-Talvez, eu deva mudar. Talvez, deva ser justamente o que você quer que eu seja. Talvez, eu crie mais uma camada, além de tantas, para criar a sensação de controle e satisfazer seu desejo egoísta de poder, de superioridade. Assim, eu estaria satisfeito também em parte, pois estando sob domínio, agora eu teria mais uma camada sufocando as outras mais abaixo. Sufocando... Às vezes, pergunto-me:- De quantas camadas é feito o ser humano? E ao mesmo instante chego a simplória conclusão: a imagem refletida na sociedade é como a surface, a primeira camada cuja normalidade social tentamos transmitir apesar dos pesares. As outras mais profundas, ou mais precisamente Deep persona, são as nossas partes mais podres e paradoxalmente as mais belas que nos causam prazer em maior ou menor grau de intensidade. É um tanto aterrorizante pensar dessa forma, mas até mesmo o horror do ato mais insano tem um aspecto de beleza que o instinto primitivo aplaude como bom telespectador. É difícil refutar tais pensamentos, pois se em primeiro plano vem a ideia, a sucessão em prática são as variantes da ideia. Assim, a imaginação fica encarregada de criar várias situações quase idênticas, dado ao grande número de linhas (situações) postas uma ao lado da outra. Agora, se analisarmos apenas as duas linhas, uma em cada extremidade, veremos uma transformação acentuada entre elas. Eu classifico tudo usando um termo mais específico como o universo paralelo do plano mental. O pensamento surge a partir desse processo e decorre da imaginação, o qual pode ser um produto final daquilo que almejamos fazer, sem ter a inerência da moralidade, da ética e da razão. Temos essa tendência psicótica ao alimentar os desejos que nos causam prazer, sejam bons ou ruins. Freud explica isso muito bem o classificando como "id", digo-lhes que o termo sugere "id"de idiota. O idiota entrega-se ao ego na esperança de ser controlado.
- Por que você fala dessas coisas, amor? Eu só quero o seu bem.
-Talvez, porque eu me sinta um completo babaca sem perspectiva, nada do que eu faço da certo. Você me ajuda?
-Claro! Eu vou ajudá-lo da melhor maneira possível.
Meses depois...
- Naquela noite meu carro ficou à beira da estrada e fui forçado ferir a mata através da minha intrusão. A lua parecia iluminar o caminho nutrindo a ideia fixa de desbravador insano, e transpor os galhos firmemente emaranhados dos arbustos era uma das vazões do meu sentimento. Sem alternativa impus-me a determinação de continuar aquele propósito, senti alguns ramos riscarem minha pele como uma agulha fina e o lamaçal, por vezes, encharcarem-me os pés. O barulho de sucção dentro das botas misturava-se ao som dos insetos ao redor, distraia-me da carga dos ombros simplesmente por desviar minha atenção do esforço feito para satisfazer aquele ser demoníaco, que me levava para longe da sociedade. Quando, pois, rompi a última cerca de espinhos, a qual a natureza tratou de fazer ao longo do tempo, visualizei na penumbra de um campo aberto uma construção solitária. Quanto mais eu me aproximava, os contornos ficavam mais nítidos e denunciavam os detalhes de um lugar desabitado por longos anos. A estrutura de madeira pendendo para um lado parecia frágil e tendenciosa ao chão. A porta entre aberta rangeu quando abri, dava para observar a claridade da lua passar por entre as inúmeras frestas nas madeiras e o cheiro de mofo impregnar-me as narinas. Havia inúmeras ferramentas pontiagudas e cortantes penduradas pelas paredes e inertes no decorrer do espaço daquele lugar, tanto quanto espalhadas em bancadas rudimentares de madeira. Passou-me pela mente desesperada perfurá-lo com um empoeirado coletor de grãos, uma estocada certeira no pescoço. O lugar, onde estávamos inseridos, encaixava perfeitamente no invólucro carnal que suportava tamanha magnitude maligna, o qual meu intento amedrontado procurava enterrar num sono eterno. No entanto, para tal coragem, eu precisava transpor a moralidade imposta em minha vida tanto quanto o fado religioso sobre o cerne do meu espírito, cujo desejo de vê-lo agonizar exauria por sufocamento de consciência. Assim, estando ele salvo pelas conjunturas do meu aprendizado observador de mundo, não sem antes sentir o tilintar de foices e facões quando lhes esbarrei o corpo, dei um golpe para apenas desmaiá-lo e arrastei-o até uma das pilastras de sustentação, próxima a um espaço reservado parecido com um depósito e o trancafiei. Estando esvaído de forças, as pálpebras fechando sem meu consentimento, olhei para sua inércia dando-me a impressão de sentir a perversidade fria naquele íntimo sorrir para mim. Após ter a certeza do poder dos grilhões para mantê-lo num cárcere seguro, deixei-me vencer pelo cansaço e adormeci ao lado daquele monstro. No outro dia, não sei por qual motivo acordei em casa. Segundo os policiais, fui encontrado inconsciente, os grilhões tinham marcas de sangue era o único sinal da luta árdua travada pelo maníaco para escapar. Não encontraram meu carro e minha namorada estava morta. A boa notícia entre as adversidades era minha vida polpada, intacta, apenas algumas escoriações nos ombros. Caso contrário não estaria contando essa história para você.
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VINHO DOS MORTOS
HorrorVinho dos Mortos é uma sucessão de contos narrados em primeira pessoa. A cada nova cidade um jovem ardil e misterioso relata seus encontros com as vítimas.