Capítulo Único.

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— Vem com a gente, filha. Tem espaço no carro. — Insiste meu pai, mais uma vez enquanto olha no fundo da minha alma, como ele costuma fazer.

— Ah, pai. Eu realmente não estou no clima. — Ele murcha um pouquinho, como se essa viagem tivesse algum significado a mais que sobrepujasse todas as outras que já fizemos nos meus 27 anos. Meu pai levanta os olhos e volta a tocar meu interior com seus olhos castanhos escuro, do jeito como só ele sabe. Meu pai.

— Eia. Tá vindo mais um netinho aí, hein?

— Credo pai. — Fico quase horrorizada. O Cezinha ainda é novinho, e nossa situação financeira não é das melhores. Nós não podemos ter mais um filho de forma alguma. Além do mais, absolutamente nada dá a mínima impressão de que isso tenha fundamento. — Vira essa boca pra lá.

— Eu te conheço neguinha. — E então ele se vira e grita: — CARLOS. Meu genro. Pode me emprestar vintinho?

Enquanto meu pai e meu marido conversam, vou atender meu filho, Cezinha. Minha mãe se encontra ao seu lado, sentada no sofá.

— Tá vendo, filha? Seu pai tá cada dia mais chato. A idade faz isso com a pessoa, sabe disso?

— O pai tá normal, mãe.

— Normal? Eu precisei implorar pra ele me levar pra praia hoje. E agora ficar te pressionando a ir também.

Decido não responder. Eu não estou com a mínima paciência pra aguentar os caprichos da minha mãe. A situação financeira não está boa pra ninguém, e mesmo assim ela exige coisas supérfluas como essa viagem.

— E esse neném aí? — Diz meu pai enquanto pega Cézinha no colo. — Ainda não tá falando? Ele já tá com quase três anos.

— Ele fala com a gente quando vocês não estão, pai.

— Tá. Sei. Acho que você devia levar ele no fono. Isso não é normal.

— Ele só não é de falar muito, pai.

— Tô sabendo... Bom, vamos indo? — diz ele, falando com a minha mãe. — Nós partimos amanhã, mas acho que a gente não passa aqui.

Meus pais entram no carro enquanto eu estou no portão com Cézinha no colo.

— A benção, pai — Eu grito.

— Deus te abençoa, minha filha.

Ele liga o carro, e Cézinha diz:

— Tchau, vovô.

Meu pai vira a cabeça e seus olhos estão brilhando de lágrimas que nunca se demoram tanto em transbordar.

No dia seguinte eles passam cedo em casa, depois do Carlos sair pra trabalhar. Meu pai com um ar estranho. E minha mãe, visivelmente desconfortável por querer ir logo pra praia.

— A benção, pai.

— Deus lhe abençoa. Finalmente o Cézinha falou hein?

— Pois é, né pai? Fiquei tão feliz.

— Fiquei muito emocionado. — Meu pai desabotoa um botão da camisa pra mostrar a cicatriz da cirurgia que ele ostenta como se fosse um prêmio. — Esse velho não aguenta esse tipo de coisa não. Vamos com calma.

— Para de bobeira, pai.

Nós rimos um pouco enquanto ele abotoa novamente a camisa.

— Tem certeza que não quer vir com a gente mesmo, filha?

Nesse momento eu tenho clara certeza de que eu deveria ir. Mas agora não tem mais como.

— Agora não dá mais, pai. Não tenho como avisar o Carlos. E até eu me arrumar a mãe vai ter um piripaque.

Meu pai concorda com a cabeça meio triste e olha lá pra dentro de casa através do vidro da porta.

— Quem é que está aí com você?

— O Cézinha, pai.

— Eu vi mais alguém ali, hein.

— Credo, pai.

— Não é o Ricardão não né, filha? — diz ele, rindo.

— Ui, pai. Tá doido? — Nós dois rimos.

— Cê toma jeito, pretinha.

Meu pai me dá um abraço do qual eu sinto vontade de não sair nunca mais.

— Fica com Deus, minha filha.

— Você também vai com Deus, pai.

Quisera eu nunca ter desejado que ele fosse com Deus. Ele levou a sério.

Quatro dias depois, eu sou acordada às 5h da manhã por algo que me diz que tem alguma coisa muito errada. Eu não consigo parar de chorar, e o Carlos fica irritado.

— Vai dormir, amor. Eu tenho que ir trabalhar daqui a pouco.

Mas uma hora depois ele percebe que eu não estava chorando simplesmente por nada. Um telefonema. Meus pais chegaram bem da viagem, mas estavam cansados, então deixaram pra vir à minha casa no dia seguinte.

Mas meu pai morreu às 5h da manhã. Um ataque do coração pelo que parece.

***

Enquanto Murilo esperneia pra deitar sobre a cômoda de trocar, eu lembro mais uma vez de como ele foi a última profecia do meu pai. Depois de o baque ter passado, sempre sobra aquela nostalgia, que se materializa quando o Carlos vai trabalhar e o Cézinha vai pra escolinha. E ficamos só eu e o bebê Murilo em casa.

Eu posso estar ficando louca, mas a forma penetrante como meu bebê olha pra mim, como se quisesse me consolar. Ele nasceu com refluxo e teve de fazer vários procedimentos que lhe causaram uma marca no peito... Uma marca que eu já vi antes. Coisas estranhas à primeira vista, mas que me trazem paz.

Finalmente o Murilo para quieto na cômoda e começa a sorrir com seus dentinhos ainda inexistentes. Eu brinco com ele, fazendo caretas, mas ele não corresponde na mesma intensidade. Então eu entendo que não era pra mim que ele estava olhando. Era pra algum ponto atrás de mim. Eu não me viro pra ver. Só deixo minha alma sentir sua presença que se confirma no vento que balança a cortina mesmo com portas e janelas fechadas.

Não me abandone, pai.

Meu pai.

Meu Preto Velho.

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