Parte Dois

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Alfonso pôs a câmera no chão, de uma maneira que filmasse a nós dois sentados na grama. Ele havia comprado picolés para nós e eu já podia imaginar a gravação. Nós estávamos de frente ao outro nos deliciando com algo gelado no dia quente de Janeiro.

"Sabe Mai, quando tivermos uma casa..."

"Ah, mas já está pensando em casa? Não temos nem onde cair mortos meu bem!" O interrompi, rindo.

"Eu sei, por isso mesmo já estou fazendo umas amizades com o povo da ponte Silverstone" Ele zombou.

"Junto com você? Pra debaixo da ponte? Nem louca queridinho" Eu ri e dei uma mordida no picolé.

"Metida, só porque não tem que dividir seu quarto com mais nenhum pirralho medroso fica ai contando vantagens!"

"Não é verdade, eu só...exponho os fatos" Eu dei de ombros, entrando na brincadeira. "Mas me diga, o que acontecerá quando tivermos uma casa?"

"Eu ia dizer que quando tivermos uma casa, precisamos ter uma piscina com um daqueles quiosques no meio para guardamos todos os picolés e bebidas geladas para um dia quente como o de hoje" Eu fiquei em silêncio analisando a ideia. "O que acha?"

"Nada mal, Uckermann" Ele sorriu, dando outra mordida em seu picolé. "Até que você tem boas ideias de vez em quando." Vi que ele parou de sorrir imediatamente e me encarou. "É um elogio, agradeça." Continuei, querendo rir da sua expressão de ultraje.

"Bem, obrigado, sra. Uckermann, estou lisonjeado" Obedeceu, com ironia no tom. Eu gostava quando ele me chamava pelo seu sobrenome.

"É assim que eu gosto. Bem domesticado." Eu disse, lhe dando um beijo no rosto.

"Você vai ver o bem domesticado te roubar o seu picolé e virar as costas quando você pedir qualquer favor." Ameaçou, sabendo que eu odiava quando ele virava as costas para mim.

"Você não teria coragem." Falei, petulante.

"Me teste." Desafiou.

"Te odeio" Eu disse, mas sem realmente querer dizer.

"Te odeio mais" Ele devolveu. Ficamos alguns instantes nos olhando, em silencio, e, logo em seguida, ele se aproximou, me roubando um beijo gelado.

"Te amo." Eu disse, após o beijo.

"Eu te amo mais" Respondeu, me dando outro beijo em seguida.

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Em um dia desprovido do sol e o calor, tudo o que eu queria era me enfiar debaixo das cobertas e esquecer de todo o mundo em volta de mim. Mas simplesmente não podia, ele estava em meu pensamento me vigiando, não me deixando pensar em outra coisa a não ser nele. Olívia voltou com a bandeja cheia de coisas, certamente boas, mas eu não estava com fome, nem vontade de nada.

"Mai, voltei, pode ir levantando dessa cama, vamos! Coma algo, mulher!" Ela agitou os lençóis que me cobriam, fazendo uma corrente de vento passar pelo meu corpo.

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"Poncho, não! Me devolva a blusa, estou congelando!"

Alfonso corria pelo campo de futebol improvisado enrolado no pescoço com minha blusa de lã, dada pela minha avó no natal passado. Ele havia 'sequestrado' e me deixado no vento leve que passava.

"Alfonso Herrera, pare já de correr!" Mandei. "Argh, eu desisto, ok? Pode ficar com esse lixo" Eu dei as costas e, em questão de segundos, ele puxou pelo braço. "Agora vai sair correndo comigo é?" Perguntei, com uma postura desafiadora.

"Não seria uma má ideia ..." Respondeu, rindo perversamente. "Mas prefiro te arrancar mais do que gritos." Ele se aproximou perigosamente dos meus lábios.

"O que pensa que..." sem ter tempo de resposta, ele tomou meus lábios docemente, como um degustador prova de seu vinho. Aquele foi o nosso melhor beijo.

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Enquanto eu discutia com Olívia pelo lençol, minha mãe adentrou o quarto e fez um sinal para ela, eu não sabia do que se tratava até que ela virou-se para mim com o semblante sério.

"Está na hora, Mai" Ela abaixou o olhar e foi para perto do meu closet.

"Não pega a preta!" Disse, antes que ela se movesse. "Eu quero o vestido azul."

"O que...?"

"... Ele quem me deu." expliquei antes que ela terminasse a pergunta. "Foi o meu primeiro presente depois que ele conseguiu seu primeiro salário" Meus olhos se encheram de lágrimas, mas não era só dor que saía, era a saudade, que parecia querer explodir dentro de mim, pedindo, exigindo uma saída. "Ele disse que era a cor mais linda para mim. E também foi a última roupa que ele me viu usar."

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"Já posso abrir?" Perguntei ansiosa e curiosa.

"Espera!" Eu ouvi o barulho do embrulho e sorri. "Não, não é isso o que você está pensando, são só os er...chocolates"

"Pare de me enrolar, Alfonso!" Cruzei os braços e senti seu corpo mais próximo. "E então? Já posso abrir os olhos?"

"Hum... er ..." senti seu hálito perto da minha boca, depois a maciez dos seus lábios colados aos meus. "Pode, princesa"

Eu abri os olhos e vi o embrulho azul. Eu puxei a fita vermelha e desembrulhei cuidadosamente o papel seda do pano também azul. Essa era a nossa cor preferida. Era um vestido. Eu o ergui na altura dos ombros vendo os detalhes. Havia um decote com alças entrelaçadas e costas nuas, era simples e sexy ao mesmo tempo, e justo na cintura. Não passava dos joelhos e era um azul caneta, como ele dizia, mas eu via um azul royal.

"Ah, adorei Poncho!" Eu pulei em seus braços. "Obrigada, obrigada, obrigada!!" O enchi de beijos por toda a face e depois, enfim, nos lábios. Aqueles lábios que tanto amo.

"Eu te amo" Ele disse após o beijo. "Eu te amo muito minha princesa azul"

"Eu também, meu príncipe azul!"

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Peguei o vestido na minha frente e apertei contra meu peito. Talvez eu pudesse sentir a presença dele, me abraçando forte e me embalando no ritmo da música do baile daquela noite. Eu tomei um banho demorado e cheio de lembranças.

Vesti o vestido azul com uma sapatilha simples. Olívia arrumou meu cabelo, pôs uma presilha brilhante e deixou meu cabelo solto. Pus meus óculos de lentes negras e gigantes. Eles cobriam mais dos meus olhos, assim ninguém poderia ver o quão estavam inchados e vermelhos. Fui em silêncio pelo caminho, assim como os demais. Fechei os olhos e quando abri percebi que havia chegado ao local. Eu enchi meus pulmões de ar e o soltei lentamente. Saí do carro e logo Olívia me amparou, passando seus braços envolta dos meus ombros. Notei que fungava enquanto andávamos.

Quando cheguei na sala gelada, um vento leve bateu em meu rosto, trazendo a realidade tão dura até minha memória. Eu me aproximei em meio as pessoas de preto a minha volta, eu me destacava. Foi então quando o vi.

Palavras Que Não Pude Dizer (Conto)Onde histórias criam vida. Descubra agora