Copyright 2017 – Sylvana Camello
1a. Ed. - Goiânia / Goiás
I
Fazia frio quando ele chegou. Bateu na porta, limpou os pés no tapete e entrou. Parecia cansado, o cabelo desgrenhado, as mãos trêmulas e calosas. Pediu para nós um copo de água. Um tipo sereno e contemplador.
Esperei que mamãe me mandasse trazê-lo. Só o fiz quando acenou para mim com a cabeça. Fui até a cozinha, peguei o maior copo que tínhamos no armário, o enchi de água da torneira e entreguei para ele. O estranho me olhou de modo esquisito, particular. Sorveu todo o líquido que lhe entregara.
-Não precisa se envergonhar moço, ele tem problema de cabeça - disse minha mãe. O estranho sorriu e me devolveu o copo vazio.
Ela adorava contar minha história para os outros; que nunca aprendi a ler, que não sabia escrever. Falava que minha cabeça era enorme quando nasci. Tão grande que tiveram que cortar sua barriga para eu sair. Quando dizia isso mostrava a cicatriz, tão grande quanto a circunferência do meu crânio.
Parte de tudo isso era verdade. Apesar de frequentar a escola, eu nunca aprendi a ler, e muito menos, escrever. Não sei o nome da minha cidade ou do meu país; e muito menos onde moro. Eles me falam, mas eu esqueço. Só sei que aqui faz muito frio, têm muitas árvores e bosques. Chove muito durante o dia, um chuvisco fino. Conheço todo mundo da minha rua, seus nomes e onde trabalham. Às vezes conversam comigo e me dão doces; desde que eu não brinque com seus filhos e filhas.
Na minha escola todo mundo é como eu. Brincamos de dançar, com jogos de madeira e de pintar. Só quando tenho que ir para os livros é que fico com dor na testa. Tenho vontade de aprender as letras, mas elas me escapam assim que entram na minha cabeça. Não consigo deixá-las presas lá dentro, apesar de me esforçar muito. Minha mãe diz que a culpa é do meu pai por chutar sua barriga quando grávida de mim. Não gosto quando conta isso para os outros. Me sinto culpado por ele ter ido embora, por me deixar sozinho com ela. Sempre vou me lembrar dele emburrado comigo, me chamando de retardado, dando cascudos na minha cabeça. Quando bebia era bem pior; batia em mim e na minha mãe com o que encontrasse pela frente.
Uns dias antes do velho aparecer, ele me deu um dinheiro e pediu para que fosse na padaria comprar três sonhos. Saí correndo pelo portão, feliz por ser útil; porque gosto muito de ajudar. Adoro quando me pedem para fazer alguma coisa, me sinto importante.
Entrei na padaria com John no balcão.
-Eu quero três sonhos - disse lhe entregando o dinheiro.
O balconista me olhou com olhos estranhos, com um sorriso maroto no rosto.
-Muito bem, vou lhe dar três sonhos - John pegou um saco de papel e gritou dentro dele: – Ficar rico! Ganhar a Copa do Mundo de Futebol! Me casar com Elizabeth! - depois fechou o saco e me entregou – Aqui estão os seus sonhos.
Voltei para casa com o saco na mão. Tão feliz quando saí. Papai me deu um "tapão" na orelha.
-O saco está vazio, seu trouxa!
-John disse que quer ficar rico, ganhar a Copa do Mundo de Futebol e se casar com Elizabeth.
-Como você é idiota, Pablo!
Naquele dia apanhei tanto que minhas pernas ficaram em carne viva. Ele me bateu com o cinto repetidas vezes, bem forte e com muita raiva. Fui dormir com fome e dor.
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O Mensageiro - Uma singela e comovente história de terror...
Short StoryUm sorriso no rosto, cabelos grisalhos, um menino ingênuo e carente. O que esperar dessa amizade? Nunca confie no que vê. As aparências sempre enganam. O mal se espreita nas sombras e nos rostos calmos e tranquilos da terceira idade. O diabo tem fac...