5 hrs e 10 min, 13 de novembro de 2014.
- William, o café está na mesa!
A governanta se afasta da porta de meu quarto. Abro meus olhos, recostado à pia do banheiro fito fixamente a imagem refletida. Quem eu sou e o que querem que eu seja são dois extremos distintos. Ainda não alcancei a maioridade, aliás a data está circulada em vermelho no calendário, uma contagem regressiva para a liberdade. Giro a torneira, a água é fria, talvez isso me faça despertar, lavo o rosto e caminho em direção à minha cama onde está meu traje de hoje. Jeans, moletom e jaqueta, todos pretos.
Por parte de mãe sou descendente de uma família antiga, resultante das várias misturas de sangue europeu e que após a Segunda Guerra imigrou para o Brasil e por parte de pai tenho a herança verde e amarelo correndo em minhas veias. Temos parentes espalhados por todo o mundo, mas conheço apenas aqueles que estão distantes por apenas dois ou três graus de parentesco. Quando meus pais se conheceram, os dois já pertenciam a aristocracia e de uma forma muito conveniente firmaram uma aliança comercial através de um casamento, aumentando assim todo um patrimônio que vinha sendo passado geração após geração.
Meus pais dizem que serei um ótimo administrador, mas nunca me perguntaram se quero mesmo isso pra minha vida. Eles sempre enfatizam que se vivêssemos no subúrbio eu não teria chance de fazer birra com o que o mercado de trabalho me impusesse, ou aceitava ou passava fome. Quando nasci a riqueza já estava aqui, nunca passei fome, não faço o tipo humanitário que larga tudo e vai pra sarjeta, também não sou um boyzinho que gosta de ostentar roupas ou carros de luxo eu tenho meus próprios planos e estar preso em um escritório não faz parte deles. Não sou Hip (nada contra...), quero sim trabalhar, mas com algo que seja mais a minha cara.
Olhando assim, parece que vivo despreocupado com o futuro. Ao contrário de uns e outros por aí eu não vivo assombrado pelo fantasma do desemprego ou da pobreza. Eu tenho um teto sobre minha cabeça, comida na mesa, dinheiro no bolso... posso ter o que eu quiser... .Porém isso é um status, uma aparência, por dentro sou como qualquer outro adolescente confuso e indeciso, tentando entender como a vida funciona. Este é meu último ano na escola e eu não sei bem o quê escolher, mas com certeza não quero nada relacionado à cargos administrativos. No meio do ano algumas faculdades vieram realizar uns vestibulares com a gente, eu fiz algumas provas... Eu tinha um pouco de esperança. Quem sabe, por um golpe do destino eu não descobrisse minha vocação?
As mangas do casaco cobrem minha Tatoo, nem preciso dizer que foi um inferno quando descobriram mas depois de um tempo acabaram apenas mantendo suas críticas para si mesmos. Para evitar um stress eu prefiro ser discreto quanto a isso. Talvez depois eu faça mais algumas, não sei quando, mas com certeza será depois que eu já morar sozinho. Sento à mesa sob a vista grossa de meus pais por causa da roupa e do cabelo despenteado, já estão cansados de falar a mesma ladainha, tão cansados que nem falam mais, só esboçam com o canto dos lábios. Pareço deslocado neste cenário, as cortinas de linho, as obras de artes, o lustre, os móveis confeccionados com o mais refinado carvalho, o tapete, a tapeçaria, tudo combinando harmonicamente com os talheres de prata.
Lancho tranquilamente, ao contrário de alguns dos meus colegas não preciso acordar de madrugada e pegar um coletivo. Gostaria de experimentar isso pelo menos uma vez. Não pense que estou cuspindo no prato que como, só tenho vontade de experimentar um outro tipo de vida. À mesa está farta com pães, torradas, geléias, ovos, bacon, café e etc. Meu pai mesmo nesse momento sagrado de refeição em família está munido de seu celular, segundo ele nunca se sabe quando poderá surgir uma emergência. Minha mãe é a que mais respeita as tradições familiares, como uma perfeita socialite toma seu chá com torradas e geléia, sem quebrar seus regimes. Tenho todos os dias contato com pessoas que doariam um rim sem hesitar para trocar de lugar comigo. A vida é engraçada, quando a gente não possui o fruto de nosso desejo experimentamos algo similar a uma crise de abstinência, sofremos pelo fato de não ter e quando temos em demasia tudo parece ser tão descartável.
6hrs. Meu pai entra no carro e gira a ignição é a minha deixa para entrar pela porta traseira com minha mochila. Depois de uma bela visão da natureza propiciada pela pequena estrada de terra que nos isola da cidade, chegamos ao primeiro engarrafamento do dia, mesmo na nossa condição financeira não estamos livres desse transtorno... Habilmente meu velho vai procurando uma posição vantajosa para que quando o sinal abrir possamos seguir adiante sem nenhum problema. O carro é um misto de luxo e discrição. Quando finalmente chegamos a escola algumas meninas olham atentamente para ver quem desce. Todos os dias é a mesma coisa. Elas me olham da cabeça aos pés e eu ignoro, não porque me ache superior, é só que elas não fazem muito meu tipo.
David me espera na escada, terminou de cifrar uma nova música pra banda... ah é, eu faço parte secretamente de uma banda, totalmente desconhecida e que vai estrear sábado a noite num Pub localizado próximo ao parque no centro da cidade. Por enquanto que a fama não bate a porta, somos só iniciantes sem fãs com cartazes encorajadores, sem bottons ou camisetas. Na minha família tem alguns tataravôs que eram músicos, porém eles seguiam uma linha mais clássica, provavelmente se revirariam no túmulo se descobrissem a minha paixão proibida pelo rock. Eu pego a cifra e mentalmente visualizo a sequência melódica se formando, um tom suave mas cheio de vida, um complemento perfeito para a letra que o Gabriel escreveu. Você deve se perguntar como eu vivo essa vida dupla, como tudo isso começou, como ensaiamos, como vou fazer pra ir a estréia, quando vou abrir o jogo com meus pais... Vamos por partes, começando Da Capo.
Foi paixão à primeira ouvida, eu tinha uns 15 anos, já frequentava uma escola de música, tocava violoncelo. Tinha acabado de sair da aula teórica e vi uns garotos ouvindo um ritmo até o momento estranho para mim, me aproximei e logo recebi gratuitamente uma aula sobre as mais diversas modalidades de rock. Para os leigos, essa nomeclatura engloba genericamente qualquer música com uma batida enérgica com solos de guitarra e gritos guturais. Mas dentro desse universo existem muitas modalidades com características bem distintas. Como o hardcore que é bem diferente do grunge. Fui aos poucos sendo acolhido por essa tribo e onde eu chegava que não fosse evento familiar, tinha um representante e foi na escola que com o passar dos meses formamos um grupo.
Meu pai chega todos os dias pontualmente na porta da escola às 18 hrs para me levar pra casa, horário em que ele encerra o expediente na empresa, as aulas terminam as 17 hrs e 30 min, o seja tenho 30 min para fazer o que mais amo que é tocar. Ensaiamos na garagem do Alan, o baterista, ele mora aqui perto, algo bem conveniente para mim. A mãe dele dá maior força para a gente, gostaria que a minha fosse assim... inclusive foi ela que arranjou pra gente estrear la no Pub, onde ela trabalha preparando coquetéis. Pelo que sei moram só eles dois, o pai dele faleceu e a mãe assumiu a responsa de um duplo papel social.
Quando o sinal soa o silêncio da sala voa pela janela e rapidamente garotos e garotas adentram arrastando cadeiras. Eu nem reparo muito na galera, faço minha parte, não incomodo eles e nem espero que eles me incomodem. Conheço todos de vista, mas amigo mesmo só o Alan. Ele senta na fila ao lado da minha, há umas duas cadeiras atrás em relação a mim. Eu até iria pra mais próximo só que ele fica lá com a mina dele e sabe como é, não tô a fim de segurar vela. Falando em vela, eu até tava de rolo com uma mina da outra sala, mas digamos que com o tempo nossos interesses se tornaram muito divergentes.
Na minha fila sempre o assento a frente do meu está vazio, ninguém senta lá mesmo sabendo que o mapa de turma é um documento inválido. O dono do lugar parou de vir de repente e muitos cochichos de corredor surgiram... só vi ele umas duas vezes...aparentava ser um carinha normal. Atrás de mim senta uma mina, eu sei porque os professores sempre distribuem as provas para o primeiro da fila que repassa para quem está atrás e assim vai até o último da fila. Nunca cheguei a puxar assunto, parece que ela segue o mesmo sistema que eu, a política do não me incomode e tudo fica bem.
A professora chega, a galera ainda está se acomodando, ela pede silêncio, abre o diário e inicia a chamada...
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Convergindo (Em Construção)
Novela Juvenil"...toda essa história começou há seis semanas atrás quando minha rotina continuava pacífica e monótona... aliás, eu já estava contando os dias para minha formatura, não porque estivesse empolgada e sim por querer me ver logo livre disso. Tão inocen...