Instintivamente Humano

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17hrs e 37 min...

- Fê, você tem uma entrega... casa da Ju. 8 sandubas no capricho.

Quem vinha de cidade pequena há alguns anos atrás podia achar até estranho um supermercado com lanchonete, mas venhamos e convenhamos, os tempos são outros, todo mundo que tem um tipo de serviço a oferecer precisa acompanhar o ritmo do mercado, caso contrário você quebra... a concorrência tá aí, o consumidor dita as regras e se você não consegue se adaptar e trazer inovações já era. Em todos os campos da ciência, da medicina, da tecnologia, da alimentação e etc... tudo se desenrola por causa das nossas necessidades. Essas grandes invenções que mudaram o curso da história, você acha que veio de onde? Os caras estavam sem fazer nada e de repente... tcharam?! A demanda mantém viva essa chama que alimenta esta máquina que chamamos de mundo. E no nosso caso tem uma escola do outro lado da rua e um monte de gente indo e vindo o dia inteiro.

Pego os embrulhos vou até o depósito e pego a bike, ponho o capacete porque o Rogério é bem rigoroso em relação aos EPI's que pra quem boiou nessa sigla são os equipamentos de proteção individual... o lema dele é: Segurança Sempre... hahaha parece até piada, mas enfim... Traço mentalmente o percurso, e me vejo repetindo aquele trajeto pela milionésima vez. Dona Júlia é uma cliente assídua, ela mora somente com o filho, o Alan. Ele é um cara bacana, tem a mesma idade que eu, vez ou outra nos fins de semana vai lá no supermercado com a mãe e foi assim que fizemos amizade. Ele estuda na minha ex-escola...tipo é meio treta olhar todos os dias pra lá e saber onde eu poderia estar.

À medida que me aproximo da casa o som parece mais alto. A Ju já tinha comentado que os rapazes estavam ensaiando durante toda esta semana para uma apresentação e até me convidou. Sei que tocar a campainha não os alertará da minha presença, por isso dou a volta e dirijo-me a origem daquele som. Eles são bons, lembram Bullet For My Valentine... eu sei porque já andei com quase todo tipo de galera. Comecei com o Funk, era pura ostentação ir pra os bailes com uma mina em cada braço, fingir que sabia beber pra impressionar e ganhar a liberdade de dar uns "amassos". A fase durou pouco, daí troquei de estilo e cai no mundo do Rap, o ritmo e a poesia sobre a sociedade, a realidade nua e crua... a violência, o medo, o poder... os sonhos e as consequências que uma simples escolha pode trazer. O bonde era da pesada, nesse bairro onde morei todo dia tinha um presunto fresco... vou mentir não, andei com eles, experimentei algumas paradas, eu tinha uns 14 mas sempre fui consciente do tipo que vê o mar, mas não entra com tudo. Depois disso mudamos de bairro, meu pai tava meio preocupado com aquele ambiente nada saudável, o medo constante de uma bala perdida. Não que fossemos marcados, mas sabe como é... a bala sempre encontra um alvo, mesmo que seja um que não tem nada haver.

O apartamento novo era totalmente contraditório a nossa residência anterior, ficava num bairro mais tranquilo e tinha até uma pista de skate. Aí me aprumei mais na vida. Sempre fui bom em me enturmar e de cara fiz muitos amigos, os quais hoje sobraram só alguns. Foi nesse ponto crucial que entrei em contato com o rock. Eu sei que tem várias tribos diferentes, dos mais suaves aos mais radicais, assim como em qualquer estilo de música ou ideologia política e religiosa. Apesar de ter vivido tanta coisa sempre fui esperto quando o assunto era escola. Os caras ficavam putos porque mesmo sem pegar nos livros eu ainda mantinha a média. Claro, na minha fase mais doideira até cabular eu cabulei aula, lembro que uma vez vi os manos puxando um trago na quadra da escola e fui lá ver qual que era a boa, só experimentei uma vez pra nunca mais... puta que pariu, parecia que eu tava sufocando, a fumaça entrava rasgando tudo, minha garganta, pulmões, nariz e olhos... chorei involuntariamente enquanto os caras riam da minha cara.

- Ai mano, vou pegar a grana, espera um pouco...

- Firmeza...

Havia 5 caras contando com o Alan e 2 minas até jeitosinhas. Um deles tinha maior pinta de playboy mas engoliu o sanduba com tudo, fiquei pensando... caralho, que briza. Recebi o pagamento pelo lanche, dei a volta e segui fazendo o percurso inverso até meu trampo. No meio do caminho avistei uns caras, saquei na hora a onda que eles estavam, passei por longe... fantasmas do passado têm que permanecerem mortos mesmo. Cheguei quase as 18 hrs e tinha um carregamento de mercadorias me esperando. Hoje a noite vai ser longa. Mas quer saber? Nem tenho pressa, ponho meus fones e começo o serviço braçal.

"...O universo é uma canção...E eu vou que vou..." ¹

Convergindo (Em Construção)Onde histórias criam vida. Descubra agora