Prólogo: Quando o Destino e Morte tomam chá de maçã

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Murano. Mil quatrocentos e noventa e oito habitantes. Uma mulher aos oito meses de gestação. Um jovem carpinteiro recém-casado prestes a engravidar sua esposa. Sempre tive um capricho por números redondos. Mil e quinhentos me soava bem. Aquelas duas crianças iriam vingar. Estava nos meus planos.

Murano. Pequena província de agricultores incrustada aos pés de uma montanha na Itália. Hábitos antigos, velhas tradições, lendas anciãs passadas de geração a geração, cantadas no sotaque de um dialeto tão arrastado quanto o tempo que parecia não passar por ali. Viviam isolados de tudo, aqueles plantadores de cenouras e rabanetes. De quase tudo, na verdade. Infelizmente para eles, ninguém se esconde de mim. E nem dela.

Agradava-me o clima bucólico daquele lugar. Quase me fazia esquecer todo o inferno em que estava se transformando o resto do mundo. Passei por lá em certo domingo bem quente. Foi o meu último encontro com a Morte. Éramos bons amigos, então.

Avistei-a ainda um pouco de longe, de costas para mim, os cabelos muito negros e muito longos escorrendo pelas costas pálidas cobertas de seda escura. Virou-se tão logo sentiu minha presença, os olhos estreitando-se para enxergar contra a luz do sol que se punha. O ano era 1920. A Morte estava cansada. A gripe espanhola deixara-a sobrecarregada, exausta, mesmo.

A ideia toda era audaciosa desde o início, confesso, e acabara saindo um pouco do controle ao final. A falha fora minha, eu devo admitir, como em todas as outras vezes. O acordo entre nós dois, tão ancestral quanto a criação do mundo, foi sempre muito claro: cabia a mim, o Destino, conduzir os acontecimentos da existência. A Morte passava apenas para recolher as almas. Eu gostava assim. Tinha toda a liberdade de manejar a vida como melhor me aprouvesse, sem me preocupar com a interrupção repentina de uma visita inesperada da minha velha companheira. A Morte vinha quando era chamada, e eu a chamava com bastante frequência. Ela não se importava, as pequenas colheitas realizadas de maneira rápida e eficiente, do jeito que tinha que ser. Era seu trabalho, afinal, e ela o levava bastante a sério, apesar de desenhar sempre um sorriso de muitos dentes em seu rosto liso e perfeito na hora derradeira, o sorriso da Morte, sagrado e fatal. "A última das lembranças deve ser bela", ela me falava, e então fazia por onde. Se fosse tão próxima do mundano quanto eu, se procurasse saber ao menos um pouco sobre a essência degradada da humanidade sobre a qual pairava, categórica e definitiva como a única certeza, talvez minha amiga Morte mudasse de ideia quanto ao merecimento dessa dádiva.

Tentei abrir-lhe os olhos, inúmeras vezes, mas ela não queria me ouvir. Tinha sempre assuntos mais urgentes a discutir, e eu não podia culpá-la. Prudente como era, preocupava-a outra coisa. Inquietava-se com as grandes colheitas, os grandes desastres, as grandes catástrofes, o ceifar de centenas ou milhares de vidas de uma só vez, e era por isso que tínhamos que nos ver, vez ou outra, porque ela insistia que era indispensável todo o planejamento possível. "Nenhum sorriso é grande o bastante para tanta gente", ela me dizia, aflita, assim que eu terminava de expor-lhe os efeitos do próximo furacão que assolaria a Terra.

Esses nossos encontros eram fortuitos, nunca premeditados, mas frequentes, tão frequentes quanto necessários, horas intermináveis de trabalho duro de argumentação para convencer-me de que tudo aquilo era preciso, outras tantas discutindo métodos e estratégias, metade dos quais eu esqueceria tão logo nos separássemos. Ainda assim, metade de um plano era melhor do que plano nenhum, a Morte sabia, tanto quanto sabia que não podia mesmo esperar que eu me curvasse a desígnios muito estritos e concretos.

A humanidade é capaz de elaborar teorias curiosas sobre mim, devo admitir. Diverte-me sobremaneira aquelas que dão conta de um destino único e determinado, traçado desde os primórdios até o fim dos tempos, nenhuma possibilidade de mudança pelo caminho. Que tédio! Diverte-me outro tanto ainda o tal do acaso, que inventaram para justificar qualquer coisa que fuja das mãos frágeis dos homens, acontecimentos que, em realidade, são em sua maioria fruto da minha distração, aquilo que acontece quando estou ocupado olhando para outro canto.

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⏰ Última atualização: Jan 08, 2017 ⏰

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