capítulo 10

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A minha história também depende dela, Domingas.
Era uma tarde nublada de sábado, logo depois do Carnaval. As crianças
da rua se alinhavam para passar a tarde na casa dos Reinoso, onde se
aguardava a chegada de um cinematógrafo ambulante. No último sábado de
cada mês, Estelita avisava as mães da vizinhança que haveria uma sessão de
cinema em sua casa. Era um acontecimento e tanto. As crianças almoçavam
cedo, vestiam a melhor roupa, se perfumavam e saíam de casa sonhando com
as imagens que veriam na parede branca do porão da casa de Estelita.
Yaqub e o Caçula usavam um fato de linho e uma gravatinha-
borboleta; saíam iguais, com o mesmo penteado e o mesmo aroma de
essências do Pará borrifado na roupa. Domingas, de braços dados com os dois,
também se arrumava para acompanhar os gêmeos. O Caçula se desgarrava,
corria, era o primeiro a beijar o rosto de Estelita e entregar-lhe um buquê de
flores. Na sala, Zahia e Nahda Talib conversavam com Lívia, a meninona
aloirada, sobrinha dos Reinoso; dois curumins de uma família que morava no
Seringal Mirim serviam guaraná e biscoitos de castanha aos convidados.
Esperavam o cinematógrafo, e cada minuto passava com lentidão porque
estavam ansiosos para ver a parede branca do porão cheia de imagens,
ansiosos por uma história de aventura ou de amor que tornava a tarde do
sábado a mais desejada de todas as tardes. Então o tempo fechou com nuvens
baixas e pesadas e Abelardo Reinoso decidiu ligar o gerador. Na sala iluminada
um batalhão de soldadinhos foi ordenado sobre a mesa, e selos de outros países
passaram de mão em mão, como diminutas vinhetas de paisagens, rostos e
bandeiras longínquas. A meninona loira apreciava um selo raro, e seus braços
roçavam os dos gêmeos. Alisava o selo com o indicador, os outros meninos se
entretinham com o batalhão verde, e ela parecia atraída pelo aroma que
exalava dos gêmeos. Lívia sorria para um, depois para o outro, e dessa vez foi o
Caçula quem ficou enciumado, disse Domingas. O Caçula fez cara feia, tirou
a gravatinha-borboleta, desabotoou a gola e arregaçou as mangas da camisa.
Bufou, se esforçou para ser dócil. Balbuciou: “Vamos dar uma volta no
quintal?”, e ela, olhando o selo: “Mas vai chover, Omar. Escuta só as
trovoadas”. Então ela tirou um selo do álbum e ofereceu-o a Yaqub. O Caçula
detestou isso, disse Domingas; detestou ver os dedos do irmão brincarem de
minhoca louca com os dedos de Lívia. Não era sonsa, era uma mocinha apresentada, que sorria sem malícia e atraía os gêmeos e todos os meninos da
vizinhança quando trepava na mangueira, e em redor do tronco um enxame
de moleques erguia a cabeça e seguia com o olhar a ondulação do short
vermelho. Mas ela gostava mesmo era dos gêmeos; olhava dengosa para os
dois; às vezes, quando se distraía, olhava para Yaqub como se visse nele
alguma coisa que o outro não tinha. Yaqub, meio acanhado, percebia? O
Caçula pensava que depois do baile dos Benemou a Lívia ia cheirar e morder o
gogó dele e desfilar com ele nas matinês do Guarany e do Odeon. Já tinha
prometido roubar o Land Rover dos pais e passear com ela até as cachoeiras do
Tarumã. Zana desconfiou, escondeu a chave do jipe, cortou a curica do
Caçula. Brincavam com os dedos, e Omar já tinha se afastado dos dois quando
o homem do cinematógrafo chegou. Trazia na maleta de couro o projetor e o
rolo do filme. Era alto, de gestos calmos, o rosto magro dividido por um
bigodaço: “Trouxe a grande diversão, o grande sonho, curuminzada”.

Dois irmãos (Parado Por Um Tempo)Onde histórias criam vida. Descubra agora