Capítulo 16

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Ela gaguejou, confusa; seus olhos encontraram a gangorra agora vazia.
O vão da janela escurecia, trazendo a noite para o interior da sala. Pensava no
pendor matemático do filho. O pastor, o rapaz rústico, o mágico dos números
que prometia ser o cérebro da família. Adiou a resposta e se levantou de
supetão, meio amarga, meio esperançosa, dizendo a Domingas uma frase que
no futuro repetiria tal uma prece: A esperança e a amargura... são parecidas.
Na velhice que poderia ter sido menos melancólica, ela repetiu isso
várias vezes a Domingas, sua escrava fiel, e a mim, sem me olhar, sem se
importar com a minha presença. Na verdade, para Zana eu só existia como
rastro dos filhos dela.
O Caçula, expulso pelos padres, só encontrou abrigo numa escola de
Manaus onde eu estudaria anos depois. O nome do colégio era pomposo —
Liceu Rui Barbosa, o Águia de Haia —, mas o apelido era bem menos
edificante: Galinheiro dos Vândalos.
Hoje, penso que o apelido era inadequado e um tanto quanto
preconceituoso. No Liceu, que não era totalmente desprezível, reinava a
liberdade de gestos ousados, a liberdade que faz estremecer convenções e
normas. A escória de Manaus o frequentava, e eu me deixei arrastar pela
torrente dos insensatos. Ninguém ali era “très raisonnable”, como dizia o
mestre de francês, ele mesmo um excêntrico, um dândi deslocado na
província, recitador de simbolistas, palhaço da sua própria excentricidade. Não
ensinava a gramática, apenas recitava, barítono, as iluminações e as verdes
neves de seu adorado simbolista francês. Quem entendia essas imagens
fulgurantes? Todos eram atraídos pelo encanto da voz, e alguém, num átimo,
apreendia algo, sentia uma fulguração, desnorteava-se. Depois da “aula”, na
calçada do Café Mocambo, ele fazia loas a Diana, a deusa de bronze, beleza
esbelta da praça das Acácias. Os elogios passavam da deusa a uma moça
fardada, toda ela índia, acobreada, assanhada de desejo; e os dois, juntos,
escapuliam do Mocambo e sumiam na noite da cidade sem luz.
Foi esse mestre, Antenor Laval, o primeiro a saudar o recém-chegado expulso do colégio dos padres. Ele, o Laval, regozijado, quis saber a causa da
expulsão sumária. O Caçula não escondia de ninguém a versão verdadeira: o
ato mais insubordinado, mais infame da história da catequese dos salesianos
na Amazônia, dizia ele.

Dois irmãos (Parado Por Um Tempo)Onde histórias criam vida. Descubra agora