- Prólogo -

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Liz estava presa sob um carro, suas pernas doíam comprimidas pela lataria. Ela torcia ardentemente para que não estivessem quebradas. Sob o peso de uma tonelada de aço era inútil tentar movê-las, tampouco tinha força para levantar o veículo que a aprisionara. A avenida estava em ruínas, os quarteirões do entorno encontravam-se devastados, ouviam-se gritos ao longe, existia muito medo no ar. A poucos metros dela, na primeira esquina a esquerda, as poucas luzes que restavam começaram a falhar, até que se apagaram por completo.

A escuridão total tomara conta de tudo. A medida que a entidade se aproximava, arrasava tudo por onde passava. Liz não conseguia entender ao certo sua forma, mesmo estando a tão curta distância. Já havia desistido de tentar fugir, conformara-se em esperar que a salvassem. Dentro dela um medo irracional de uma morte dolorosamente inimaginável começava a tomar escopo. Seu corpo tremia de forma dissonante, gotas de suor escorriam linearmente de sua testa até a boca, podia sentir o gosto salgado em seus lábios. Começou a chorar.

Todos os medos de sua vida começaram a somar-se dentro de seu peito, não tinha sequer o controle sobre seus músculos, tentava lutar contra a sensação que rapidamente espalhara-se por cada parte de seu corpo, a morte era a única coisa que passava pela sua cabeça, era inevitável, e estava tão perto.

Quando os primeiros laços negros se aproximaram dela, como dedos etéreos tateando a escuridão, procurando algo para agarrar, ela fechou os olhos lacrimejantes, aceitando o fim de sua vida. Em meio ao turbilhão de coisas horríveis que estava imaginando, que na hierarquia do pavor, evoluíam do medo para a fobia, Liz conseguia formular um último pensamento consciente.

"As pessoas dizem ter medo de morrer, mas não fazem ideia do que é realmente sentir esse medo".

Seu corpo estava fora de controle a ponto de terem sido os espasmos musculares que fizeram-na perceber com algum atraso que suas pernas estavam livres. O carro fora arremessado bruscamente para dentro de uma vitrine estilhaçada no prédio ao lado, destruindo o que havia restado do interior da loja. Uma pessoa a levantara antes que ela pudesse entender o que acontecia. Estava sendo carregada nos braços enquanto uma treva surreal e fluída tomava conta de tudo ao redor. Quando o homem que a carregava, e que com extrema facilidade havia arremessado o veículo, virou-se de frente para a entidade colossal, lançou para ela um olhar intimidador, fazendo com que o monstro prontamente congelasse todos os seus movimentos.

Seus tentáculos etéreos recolheram-se rápido, retraindo-se como por instinto, ou por medo. As camadas de seu corpo começaram a se revirar e revolver, abrindo-se umas sobre as outras, como um peito sendo rasgado até deixar revelar o interior. Impulsos elétricos de um tom azul escuro corriam por toda a penumbra fluída de que a criatura era feita, do núcleo agora exposto, um par de olhos sofridos abriram-se e fitaram o rosto daquele homem, que estava com Liz em seus braços.

O ser que vinha causando toda a destruição e medo estava provando o mesmo medo espalhar-se por toda sua essência. Aqueles olhos a muito esquecidos, e agora revelados, estavam com uma expressão de pânico e descontrole estampadas em sua face. As camadas rapidamente fecharam-se sobre si mesmas, em meio a um emaranhado de descargas elétricas roxas e azuladas.

Emitiu um grito áspero e gutural, que se propagou na forma de uma onda de choque violenta, arrancando carros, corpos e escombros do chão, podendo ser ouvido a quilômetros de distância. A entidade começou a escalar os prédios com suas mãos dotadas de grandes garras aduncas, destruindo-os mais e mais. Ao ficar em pé sobre o topo de um deles, fez com que suas asas ocultas emergissem de suas costas. Eram imensas e possuíam de espinhos nas pontas das articulações, impulsionava-as gerando uma poderosa corrente de ar, fugindo e levando consigo a escuridão que o permeava.

Liz abrira os olhos, conseguia divisar agora um céu negro, diferente, um céu com estrelas. O alívio desceu em sua espinha como um raio revigorante, espalhando-se vividamente por seu corpo. Os braços a seguravam forte, ela sentia arrepios passando pelo corpo. A sua volta tudo era destruição, os prédios que eram cobertos de vidro encontravam-se em pedaços. Não existia praticamente nada inteiro no caminho por onde a entidade passara, e a neve cinzenta estava por todo o local.

Enquanto era carregada Liz olhava para trás. A mais de cem metros de distância ela conseguia ver alguns postes acesos, o asfalto estava esmagado e cheio de crateras, os veículos haviam sido prensados tal qual fossem de papel, mas nas proximidades a escuridão ainda era tão densa que ela mal conseguia enxergar a si mesma. A visão que carecia de um mínimo de claridade para funcionar estava ainda mais prejudicada pelo embaçar causado pelas lágrimas. Levou instintivamente as mãos pelo corpo concluiu que tinha apenas pequenos ferimentos e algumas contusões.

Havia tido sua segunda experiência de quase morte, e exatamente por isso sentia-se grata pela vida que ainda pulsava dentro dela.

Devaneio - (Degustação)Onde histórias criam vida. Descubra agora