Segunda Lei de Newton

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Cabelos claros, curtos lisos e arrepiados, os olhos amendoados, os braços musculosos de malhar cinco vezes por semana pareciam quase rasgar as mangas do uniforme no bíceps. Ele enrolou a caneta Bic azul nos cabelos escuros e ondulados da garota sentada a frente, que escorriam como cascata até o meio de suas costas. Ela virou para trás e sorriu, porque gostava da provocação quando ele desviava sua atenção da aula de física fingindo horrivelmente que não tinha feito nada, enquanto um sorriso ladino escapava de seus lábios. Ela deu um tapa em seu braço, sorrindo. Ele cutucou suas costelas tentando fazer-lhe cócegas. Eu queria vomitar ao assistir a cena.

Neguei com a cabeça, olhando para baixo e tendo a visão de meu caderno aberto aleatoriamente em uma folha que eu tratei de preencher com tinta preta da caneta que roubei de alguém da sala; não lembro de quem. Era a imagem de um anjo sentado tocando uma harpa enquanto várias sombras disformes com sorrisos pontiagudos formavam uma áurea negra ao seu redor. O papel estava enrugando da umidade da tinta e força com que eu pressionei a ponta até preencher todos os pequenos vultos em torno do anjo.

— ... Então, substituindo essa equação pela anterior... - desviei minha atenção para a lousa; o professor apontava uma vareta de madeira para os números e letras enquanto explicava algo sobre Leis de Newton - Você consegue ter apenas uma variável "a", que vai resultar em 4 m/s² na direção oposta de referência...

Voltei a encarar os dois idiotas sentados do outro lado da sala, nas carteiras próximas à saída. Meus olhos contornaram toda a silhueta da garota - Scarllet era seu nome, e estudávamos na mesma sala desde a sétima série, embora nunca tenhamos trocado uma palavra. Acho que ela nunca sequer percebeu que existia uma garota esquisita chamada Valentina estudando na mesma escola, que todos os dias vestia um moletom masculino enorme e calças jeans surradas, sentada na ultima carteira da fileira da parede da sala. Essa garota era eu.

Observei sua cintura fina delineada pela blusa do uniforme que fora reformado para ficar mais justo em seu corpo por alguma costureira por 30 pratas. A pele parda e bronzeada exibia um fim de semana na praia com a familia, com direito a muitos biquínis e fotos com óculos de sol para postar no facebook. A garota ouvia atentamente o professor, ou pelo menos fingia, tentando parecer que não percebia Lennick encarando a faixa de sua pele que ficava exposta entre o fim da sua blusa e o começo dos shorts jeans curtos. Ergueu uma mão para fazer uma pergunta e eu automaticamente fixei meus olhos em seu pulso: havia uma pulseira prateada cheia de pingente ali, nada mais. Desci o olhar até meu próprio braço, afastando levemente a manga do moletom para enxergar o band-aid do Batman colado ali. Mordi meu lábio enquanto voltava a cobrir a pele com o tecido macio de meu casaco; ninguém poderia ver o que eu escondia. Abaixei a cabeça sobre os braços cruzados na carteira e dormi até o fim do terceiro período.

Acordei piscando várias vezes, olhando o mar de carteiras desocupadas ao redor, embora cheias de livros, estojos e mochilas - era hora do intervalo. Me espreguicei e bocejei, logo apoiando os pés sobre a mesa, esticando as pernas enquanto rasgava um pedaço da última folha do caderno. Usando minhas unhas curtas, recortei um pequeno quadrado no papel e enrolei-o em um tubinho, passando a ponta da lingua para selar. Segurei o canudo entre os dedos indicador e médio de um das mãos e observei meu trabalho; nada mal! Com o capuz jogado sobre a cabeça e sozinha pelos próximos vinte minutos, eu acendi meu cigarro imaginário com meu isqueiro imaginário e soprei a fumaça imaginaria para cima. Oh Deus, como eu precisava de um pouco de tabaco! Fechei meus olhos e apoiei as mãos na nuca„ recostando-me na carteira preguiçosamente.

Tudo ia calmamente bem até o som de passos me obrigar a abrir um dos olhos e ver Scarllet entrando na sala, indo até sua carteira e remexendo na própria mochila colorida de marca. A garota me lançou um olhar e eu logo desviei o meu; não conseguia encarar uma pessoa me olhando, assim como não conseguia conversar olhando nos olhos. Pra mim era sempre muito difícil encarar as pessoas, então eu preferia me isolar no fundo da sala de aula e observar suas vidas de longe, tomando notas imaginárias que depois eu adicionaria às suas fichas pessoais que eu traçava, com uma foto-desenho 3x4 de cada um junto - depois eu completaria seus dados com ajuda da Olive.

Depois de retomar minha posição para algo mais socialmente apresentável, apoiei meu cigarro atrás de uma orelha enquanto tamborilava os dedos no tampão de madeira da mesa, disfarçando. Pela visão periférica eu vi quando ela escondeu um maço de cigarros num dos bolsos traseiros e o celular no outro. Ora ora ora, o que temos aqui? A aspirante a miss universo tem um pequeno segredinho na manga - ou deveria dizer: no bolso! Acho que vou ter que atualizar sua ficha no meu arquivo e esquecer a suposição de dentista apenas por causa do sorriso alinhado e branco como se tivesse saído de um comercial de creme dental. Quem diria, Scar!

Ela me lançou um último olhar antes de voltar a sair em posse de uma das grandes restrições do colégio. Cigarros, bebidas alcoólicas, Skates, chicletes e chinelos eram estritamente proibidos; não me perguntem o porquê, eu não fiz as regras eu apenas as obedecia. Na medida do possível.

Olhei meu caderno aberto com o desenho do anjo agora um pouco borrado por causa de uma poça de baba que eu fiz enquanto dormi. Será que eu tinha roncado?  Oh não! Não, não, senão teriam colado papeizinhos em minhas costas e atirado pedaços de borracha em minha cabeça - pensei. Ainda assim, passei a mão para conferir que não tinha nada grudado em meu casaco.  Fiz uma anotação mental: fechar o caderno antes de dormir em cima. Outra anotação mental: passar na farmácia.

N/A: Não vou encher de notas os capítulos, prometo! Esse é um dos únicos
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Viu a mídia? Eu sempre coloco de mídia as minhas imagens favoritas e que também tem a ver com o capítulo :3

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