Parte III

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18h00. Esperei que meus pais não estivessem em casa para que eu saísse, porque, por algum motivo, eu não queria olhá-los nos olhos. Na verdade, tinha dificuldade para olhar qualquer pessoa nos olhos naquele dia. Sentia-me pequeno, como a vista que o garoto do prédio devia ter de mim quando me olhava pela janela.

O garoto. Ele havia me deixado sozinho na praça por horas, e eu ainda não entendia o porquê. Só me sentia envergonhado. Deixei que as ligações de Miranda caíssem na caixa postal, e ela deixou recados querendo saber como foi tudo. Mais uma vez, eu não tinha palavras para explicar para ela o quão idiota fora.

Em vez disso, estou fazendo o que ela me disse para fazer de primeira: atravessando a rua, até o prédio dele. Simplesmente não aguentei não saber porque ele me deixou esperando, porque não dá outro passo. Não aguento não saber se estive enganado o tempo inteiro e não significo nada para ele. Tenho que significar, não é? Por qual outro motivo alguém viria te ver todas as noites por horas a fio?

Quando menos percebo, estou na calçada. A porta giratória está a dois metros de distância e estou travado. As inseguranças que eu havia guardado numa caixinha nas últimas duas semanas explodem e tomam conta de mim, e eu sou só um emaranhado de confusões e e se's.

– Posso ajudá-lo? – pergunta o porteiro pelo comando de voz, e eu me assusto.

Eu posso dizer que não, penso. Posso dizer que sou novo e estava perdido, mas já me encontrei. Então volto para casa, em segurança, onde a resposta nunca poderá me machucar.

Suspiro. Ótimo. Dessa forma, eu teria que conviver com a dúvida por toda a vida.

Passo pela porta giratória e olho para o porteiro, um homem de meia-idade com cabelos brancos demais atrás de sua cabine.

– Na verdade, eu estava procurando o garoto que mora no sétimo andar. Ele me disse que eu devia encontrá-lo aqui hoje.

Ele não esconde sua surpresa.

– Cam? Ele não está em casa. Saiu com os pais ontem e ainda não voltou.

Cam. Sussurro o nome em meus ouvidos, saboreando-o. É um belo nome.

– Sabe a que horas ele saiu?

– Bom, era noite, o turno era do Frank. Mas pelo que me disseram, já passava das onze.

Eu deixara o bilhete em seu quarto às 22h00.

– Eles costumam sair durante a noite?

Ele me fitou com desconfiança.

– Não sou um ladrão nem nada assim.

– É o que os ladrões dizem – disse ele, e esperou algum tempo antes de finalmente suspirar. – Tudo bem, mas não saia espalhando. O Cam mora aqui há dois anos, mas morava sozinho até seis meses atrás. Depois, os pais descobriram que ele trazia um garoto para cá durante as noites e vieram vigiá-lo. Desde então, ele parou de frequentar a escola ou passar por essa porta. Frank disse que até ficou surpreso quando o viu saindo ontem, mas que mal teve tempo para falar com ele ou com a mãe. Ela carregava o pobre garoto, desacordado e com hematomas no rosto – ele olhou ao redor como se tivesse medo que alguém ouvisse. – Se quiser meu palpite, foi o pai.

Volto para casa somente quando meus pais estão prestes a chegar. Devo ter dado a volta nos quarteirões próximos pelo menos cinco vezes, sem registrar placas ou elementos das ruas, só pensando nas palavras do porteiro. De alguma forma, eu me sentia traído. Quero dizer, era o outro quem devia se sentir traído. Aquele que Cam levava para casa. Além do mais, não era traição, era? Nós nunca havíamos trocado nenhuma palavra, mas a sensação não saía de mim. De alguma forma, as noites que havíamos passado juntos havia sido a coisa mais íntima que eu já vivenciara nos meus dezesseis anos de vida, e não conseguia acreditar que ele não havia sentido o mesmo. Eu podia ver os sentimentos no seu rosto, a euforia quando o dia seguinte traria algo interessante, a tristeza quando o dia que terminava fora péssimo. Nós dividimos tudo isso um com o outro.

Mas, ainda mais forte que a sensação de traição, eu sentia culpa. Culpa porque, se o porteiro estivesse certo, eu suspeitava que o motivo de Cam ter recebido aqueles socos fora o meu bilhete. Queria acreditar que havia sido uma coincidência, que ele se encontrara com o outro que namorava mais cedo e o pai descobrira, mas a ideia não saía da minha cabeça. E eu me torturava com ela. Maravilha, penso, uma dúvida ainda pior substituindo a anterior.

Quando olho pro céu, percebo que estou no telhado, mesmo sem saber porque fui parar ali. Se Cam estava no hospital, provavelmente não sairia de lá por um longo tempo, e não adiantava esperar por ele. Além do mais, eu não sabia se queria vê-lo.

Mas antes que eu possa me obrigar a ir embora, percebo que a janela do sétimo andar está brilhando. A luz está ligada, e uma figura masculina está debruçada sobre o parapeito.

Um sorriso involuntário surge em meu rosto, e ele está olhando para mim, mais fixo do que nunca. Suas feições são claras, apesar de diferentes; há hematomas por toda a face, em seu olho, em seu rosto. O lábio inferior está rachado, o cabelo foi cortado.

Cam.

Ele está triste, e está me dizendo isso. Está me dizendo o que aconteceu. Quero dizer a ele que eu sei, dizer que vai ficar tudo bem. De repente, tudo que ouvi mais cedo parece entrar para segundo plano. Cam precisa de mim, e eu preciso dele.

Olho ao redor, procurando o caderno para arrancar outra folha e mandar outra mensagem, mas quando volto a olhá-lo, fico surpreso demais para me mover.

Cam está sentado no parapeito, ainda olhando para mim...

Não. Ele não está olhando para mim.

Está olhando além, para baixo, para o asfalto duro e mortal, e sei o que ele vai fazer antes mesmo de olhar a decisão em seus olhos.

Afinal de contas, ele nunca tinha olhado para mim, não era? Era sempre para baixo, para o chão frio que lhe seduzia para acabar com toda essa tristeza diária de preconceitos e não ser aceito pelos próprios pais. Quando estava triste, era essa ideia que o confortava: a possibilidade que sempre estava lá a sua disposição, e não um garoto no telhado. Ele nunca havia distinguido as minhas sombras dos outros objetos que ficavam ali em cima. Nunca soube que alguém observava sua dor, assim como eu estava encantado demais tomando meros acenos de cabeça como frases completas para perceber o quanto ele sofria.

Antes que eu possa gritar, ele pula.

***

No dia seguinte, todos estão falando de Cameron White, o garoto que pulou da janela do sétimo andar após os pais ameaçarem colocarem-no em um colégio interno suíço, furiosos depois que o porteiro do prédio relatou a visita de um dos namorados do garoto.

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