Capítulo nove

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Miguel pegou o avião para Acapulco no dia seguinte. Depois de seis longos meses longe de casa, sem falar com os pais – não por iniciativa deles – mas por que o amor que ele sentiu um dia por Helen havia o impedido de se aproximar novamente. Isso era frustrante para ele. Agora, enquanto estava ali pensando sobre o que houve, percebeu o quanto fora estúpido e desonroso com as pessoas que o amavam incondicionalmente. Filho único de um casal cristão e bem-sucedido. Sim, os seus pais eram cristãos e ele cresceu dentro de uma igreja. Era até estranho dizer que ele simplesmente decidiu em sua mente que Deus não existia. À medida que o tempo ia passando e Miguel conseguia entender a fome, as guerras, as doenças, a maldade, teve convicção que não era possível que aquele Deus a qual os seus pais acreditavam pudesse existir diante de tanto sofrimento. Mesmo frequentando a igreja com eles, Miguel pouco leu bíblia, talvez os longos cultos e lições de moral dado pelo pastor da congregação já fossem o suficiente. Até que em um dia ele simplesmente deixou de acompanhá-los ainda na sua adolescência. As desculpas eram centenas, mesmo que nenhuma os convencesse, mas seus pais o amavam tanto que não haveria hipótese de obrigá-lo a seguir algo que não queria. O amor deles era tão grande que quando Miguel decidiu ser cantor, eles estavam ao seu lado até o auge. Sempre tiveram orgulho dele, sempre o acompanhava na sua longa caminhada do sucesso. Jamais viraram as costas a ele, nem mesmo quando ele disse não acreditar em Deus. Mas Miguel não se lembrou de nenhum desses fatos quando os desonrou com a sua rebeldia. Virou as costas a eles prometendo que jamais voltaria a vê-los. E assim o fez por seis longos meses que o torturava dia e noite. Era perturbador não ouvir mais a voz de sua mãe todas as manhãs lhe desejando um bom dia. O orgulho o matou lentamente até ele não aguentar mais. Lembrar àquela altura do seu namoro com Helen e da maneira como tudo havia terminado o fez perceber que seus pais estavam certos ao reprová-la desde o primeiro momento. E mesmo que eles também não o tivesse mais procurado, Miguel estava voltando, com o orgulho enterrado e a vergonha estampada bem no meio da cara.
Tudo ainda era como antes. As ruas já estavam cheias e o sol agora se lançava com tanta violência sobre sua pele que os raios pareciam interligados como trilhões de fios. Sentia-se melhor agora. As lembranças estavam claras e iam se cristalizando à medida que ele se esgueirava de volta ao trecho da sua vida pessoal, que a muito tempo ficou isolado. Seus pais eram donos de uma rede de hotéis na praia. Um dos empresários mais bem-sucedidos daquela região. Não tinha irmãos e as vezes não sabia se deveria ser grato por aquilo. Agora, em frente à casa da praia onde morou por tantos anos, um bilhão de volts de dor e constrangimento atingiu o seu coração. Engoliu em seco uma, duas vezes, até se aproximar e bater à porta. Escutou passos vindo do outro lado, apressados em sua direção, até, enfim, voltar a ver aquele rosto tão familiar.
Helena demorou mais do que deveria para entender o que acontecia. Os olhos lacrimejaram e em um impulso emocionante abraçou Miguel como a muitos meses não fazia. Tanto tempo se passara desde que a sentiu tão perto dele, que não foi difícil achar as sensações perdidas de como, aquilo era maravilhoso.
— Miguel… – ela disse isso de uma forma tão calorosa que ele sentiu que não precisava ouvir mais nada – Senti tantas saudades.
— Eu também mãe.
Miguel abriu um sorriso para a mãe, antes de recolher a mochila do chão e entrar na casa novamente. Uma nostálgica lembrança quase o nocauteou. Só tinha boas recordações daquele lugar e se questionou como conseguiu viver sem aquilo por tanto tempo. Não deveria jamais ter deixado de ir ali como fazia sempre nos intervalos dos seus shows. Perdeu uma parte importante da sua história quando virou as costas para o seu lar. Como ele sentiu saudades de um lar.
— E o pai? – Ele franziu exageradamente a testa e olhou ao redor.
— Está resolvendo assuntos relacionados a rede de hotéis – Helena viu a preocupação nos olhos de Miguel, então sorriu carinhosamente para ele – Não se preocupe filho, ele sentiu muito a sua ausência durante todo esse tempo.
Suspirou, ainda predominantemente preocupado. Seu tratamento mesmo amoroso, sempre foi duro e extremamente disciplinar com Miguel. Santiago jamais aceitou uma nota baixa do filho, jamais aceitou uma resposta mal dada a ele ou a sua mãe. Não aceitava palavrões ou gírias dentro de sua casa. Talvez por todos esses motivos não aceitasse também a sua volta para casa.
— Talvez seja melhor eu nem desfazer a minha mala e voltar de onde eu vim.
— Não subestime o seu pai. Ele é um homem bom e ama você.
Tempo. Pensou ele. Tudo vai melhorar daqui alguns dias, uma semana, quem sabe. Seu pai talvez precisasse apenas se acostumar com a volta do filho pródigo e tudo ficaria bem de novo.
Minutos depois a voz estridente de Santiago ecoou pela casa. Miguel suspirou, na esperança de que aquilo enchesse os seus pulmões não somente de ar, mas também seu coração de coragem. Os olhos de ambos se encontraram. O silêncio começou a se acumular, amargo e denso como o aroma de café. Havia coisas a serem ditas, muitas dela. Palavras suprimidas a tempo demais, armazenadas no escuro, quase esquecidas. Quando dissessem o que sentiam, talvez não houvesse mais volta.
— Sinto muito pai. – Disse isso, enquanto abaixava a cabeça – Nada do que eu fiz ou falei estava certo. Todos os dias quando me lembro, parte um pedaço enorme do meu coração. Espero que me perdoe um dia.
Santiago esboçou um sorriso enquanto caminhava na direção do filho e o abraçava, em silêncio.

* * *

Alicia teria o final de ano livre para, enfim, encontrar-se com Miguel e iniciar o desafio. Arrumou as suas malas. Já tinha as passagens compradas e esperaria até o início da tarde para embarcar em direção a Acapulco. Embora estivesse ansiosa para chegar, inevitavelmente lembrou-se da sua família no Brasil e dos motivos que a impediram de estar indo para lá. Esse seria o primeiro final de ano que passaria longe de seus pais.
Pegou um táxi e foi para o terminal central de autobuses Del sur – Interliga a capital com o destino ao sul. Aqueles ônibus eram coisas de outro mundo. Confortáveis e baratos. A viagem não seria longa, apenas 3 h e 50 min de duração. Ela só esperava que Miguel tivesse contando aos pais sobre aquela visita.
Desembarcou em Acapulco no final da tarde. Pegou novamente um táxi entregando ao motorista o endereço da casa de Miguel. Ela franziu a testa, refletindo sobre a possibilidade de não ser bem-vinda a casa dele. Os pais de Miguel, mesmo sendo cristãos, poderia e tinham todo o direito de não gostar da ideia de ter uma estranha passando alguns dias em sua casa. Seria mais sensato que ela tivesse informado a Miguel que estava indo até lá com a certeza que os anfitriões da casa permitiriam.
Quando o táxi estacionou em frente à residência, Alicia quis desistir e sair correndo de volta para a capital. A sua atitude só não era corajosa, mais arbitrariamente ousada. Sentiu uma camada de suor descer do seu pescoço até morrer no cós de sua calça, quando percebeu que seria tarde para voltar atrás.
Caminhou em direção a casa. Um lugar que Alicia adorou. Janelas de vidro, com uma varanda coberta, em frente ao mar. Estreitou os olhos mais adiante e viu o mar pela primeira vez. Era como olhar a coisa mais linda. Porém não era só isso, ela se misturou as ondas em movimento sentindo que aquele era de fato o lugar perfeito para o seu desafio. Atravessou a extensão de areia que levava a casa de Miguel. Sentiu uma ventania vinda do horizonte e o barulho esplêndido das águas a fez sorrir daquele momento. Ela bateu à porta, sentindo uma pressão no peito, pensando na possível rejeição da sua presença. Miguel a atendeu.
Lindo. Olhá-lo sem camisa, suado e com aquele sorriso bobo no rosto foi o limite para Alicia. Sabia que aquela cena não deveria perturbá-la, mesmo assim foi quase impossível controlar o turbilhão de sentimentos que a invadiram por vê-lo assim.
Instintivamente, ele a puxou para si, murmurando palavras de felicidade.
— Hoje não tem como o meu dia ficar mais perfeito.
Ela sorriu, afastando-se e o olhando constrangida.
— Contou para os seus pais que eu viria?
— Sim – falou sorrindo – Anime-se, eles estão ansiosos para te conhecer.
Ela constatou sua história assim que adentrou a casa e os encontrou amigavelmente na sala. Um rubor tomou conta de seu rosto e ela podia sentir suas bochechas queimarem a cada segundo que se passava ali.
— Olá, Alicia – Disse Santiago – Sinta-se à vontade.
Observou o seu rosto. As feições angulares e masculinas pareciam esculpidas em pedra. Sobrancelhas bem marcadas; olhos verdes, maça do rosto alta, boca definida. Aquele rosto era bem familiar para ela, como se estivesse vendo o próprio Miguel a sua frente, ou, pelo menos, uma cópia quase perfeita dele.
— É um prazer conhecer a moça do jornal – Helena se aproximou dando-lhe um breve abraço – Sou uma leitora fiel das suas colunas.
Precisou de alguns segundos para responder qualquer coisa razoável. Agradeceu sorrindo, tendo a sensação que tudo lhe parecia mais estranho do que imaginara.
— O Miguel contou a vocês por quê estou aqui?
Ele franziu o cenho um pouco impaciente.
— Eu deveria? – A questionou.
Todos os olhares se voltaram para ele quase que de imediato
— Não seria melhor você ir descansar um pouco? –  perguntou – Depois conversamos sobre isso.
Ela riu.
— Desculpe ter vindo assim Sr. Hernandes, – ela o interrompeu – mas eu propus um desafio ao Miguel, e como somos pessoas muito ocupadas, não encontramos outra chance melhor do que essa para dar início a ele.
Miguel revirou os olhos, sabendo que não poderia encontrar nenhuma maneira de induzi-la a manter a boca fechada sobre aquele assunto.
— Um desafio? – Perguntou Helena, animada.
— Sim – adorou confrontá-lo ali – desafiei a prová-lo em uma semana que Deus existe.
Os olhos de ambos se arregalaram e um silêncio se formou por detrás dos sorrisos. Alicia não soube se estavam surpresos ou felizes, ou uma mistura das duas coisas, ao ouvi-la dizer aquilo.
— Deus do céu! – Falou Santiago – Conte com a nossa ajuda caso precisar para vencer esse desafio.
— Ah droga! – Pestanejou – é um complô contra mim? É isso?
O sorriso de Alicia foi de orelha a orelha.
— Não, é só um desafio. – Ela respondeu de um modo divertido – E vou vencê-lo. Acostume-se
Imediatamente ele segurou pelo seu braço e saiu compelindo-a carinhosamente até o quarto de hóspedes, deixando para trás o som, que ele achou irritante, dos pais sorrindo.
— Ouça, Alicia – Parou em frente ao quarto, olhando bem para ela – amanhã iniciamos o seu desafio, tudo bem?
— Nosso desafio – Ela suspirou, o corrigindo. A expressão no seu rosto ao dizer isso foi simpática – Nem sei por quê se irrita tanto com isso.
— Não me irrito, eu só, – Parou por um instante, desviando o olhar do dela e pensando como seria quando tudo se iniciasse – eu só acho que não há necessidade de falar sobre isso com todo mundo.
— O que? – Ela riu – Seus pais não são todo mundo. E eles precisavam saber o porquê da minha presença aqui, não acha?
Ele voltou a olhar para ela, desta vez séria demais, de um modo tão intenso que fez os pelos do braço de Alicia ficarem ouriçados.
— E é só por isso que está aqui? – Levantou uma das mãos, passando os dedos sobre o seu rosto – É só por causa desse desafio?
Ela suspirou, fechando os olhos. Tentou encontrar um equilíbrio em qualquer lugar dentro de si, mas era quase impossível com ele tão perto.
— Não, eu… – sua voz falhou.
Ela queria dizer para ele que estava ali muito mais pela sensação incrível que sentia todas as vezes que seus olhos se encontravam com os dela, pelo desequilíbrio cardíaco todas as vezes que suas mãos tocavam as suas. Pela explosão de sentimentos que ela jamais sentiu, todas as vezes que o ouvia chamar pelo seu nome. Mas não conseguiu.
— Preciso descansar um pouco – sussurrou, se afastando dele.
Arqueou as sobrancelhas, desapontado, enquanto a observou passar por ele e adentrar o quarto em silêncio. Talvez ela não soubesse o que dizer, ou não estivesse preparada para aquilo. Enquanto Alicia fechava a porta entre eles, concluiu que talvez poderia ter exagerado. Que talvez estivesse indo com pressa demais. Seria muito difícil fingir-se de desentendido em relação ao que rolava entre eles, com ela assim tão perto.







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