"Reze, pois daqui você não escapa!"
A arma estava engatilhada. Pressionava sua têmpora esquerda.
Não existia escape daquela pressão fria, que se aquecia, conforme o contato com sua pele suada se prolongava.
Da nascente de seus olhos, lágrimas se soltavam como pedras deslizando pelo rosto rechonchudo. Montanhas, morros e vales sulcados na pele.
Mariana fechou os olhos, incapaz de se perdoar. Sentiu, antes de ouvir o estampido e ser arremessada para a escuridão.
Lamentou não ter tido tempo de rezar.
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O som era cristal iridescente ao seu redor, o tempo poeira cinza e opaca. Olhou em 360º como se estivesse num filme em IMAX 3D e viu a mão terminar de escavar a sua cova. Soube disso antes de tudo. Estava morta.
O instante da noite passou por entre seus átomos e ela seguiu até o rosto de seu assassino. Nada havia ali, além de poros e pupilas dilatadas. O calor acariciava a pele viva, reluzente de suor e ela o tocou.
A pá caiu fazendo barulho, ecoando pela imensidão desconhecida. O homem estremeceu subitamente. Sua pele fez um caminho, arrepiando seu corpo. Seus olhos notaram a mancha, esmaecida sombra ao seu lado.
Por um instante, notou-a, no outro, não. Carregou o corpo pesado da mulher e o soltou frouxamente na cova funda. O resto, foi a pá que terminou.
Livre.
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Os sonhos começaram no dia seguinte, pensou que era saudades ou uma dor de cabeça. Sentia o peso do corpo gorducho ao seu lado, o hálito de chiclete de hortelã e respiração velha e as vezes as mãos pequenas que o abraçavam por trás.
Quente e viva.
Ele dormia em paz nesses momentos.
Aos poucos, a voz sussurrou para ele: "Eu te amo."
Sentia-se amado, aos poucos a redoma o possuiu e a segurança do esquecimento fez com que ele se apaixonasse cada vez mais por Mariana. Não existia escapatória para a presença do coração dele.
Por mais que tentasse, não se concentrava mais, existia por ela e a falta dela o feria. Hematomas roxos o marcavam como beijos roubados. Emagreceu e ficou doente. A fome que sentia era outra. Não saia de casa, pois ansiava a sensação que a sede da saudade lhe secava. Mariana, Mariana, Mariana, ...
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Existia nos sonhos molhados e pegajosos.
Mariana estava ali.
Flores saiam de seus poros, como um jardim. Insetos insistiam de sair por seus orifícios. Baratas, larvas, pequenas aranhas, minhocas. Asas grudadas que impediam-nos de voar.
Mariana era um ecossistema. Frio e quente. Áspera e macia. Seca e molhada. Linda e horrível em sua beleza ancestral e humana. Sua forma era como beijos lúgubres, desmanchando-se.
Se acreditasse em contos de fada, talvez acreditasse nela como um elemental, mas ele sentia-se cada vez mais apaixonado pela perfeição que exalava dela, Mariana não fedia a carne, transcendia.
Sozinho escutava todo o funcionamento daquele cadáver, A imobilidade dos pulmões, todas as células se desintegrando, seus últimos alimentos digeridos e excretados. Pensar em Mariana assim, sem sua beleza viva de romantismos, a expandiu de sua natureza humana.
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Mariana falou com ele muito tempo depois.
Quando abriu sua boca, o cheiro de folhas e carne crua exangue com essência de jasmim molhadas dançou ao seu redor:
_ Quero estar feliz! – sussurrou o arranhas de patas e asas.
_ Peça que eu farei!
_ Me perdoe e fique comigo! – como é simples amar!
Mariana calou-se, as flores pelo seu corpo fecharam-se, tímidas ou irritadas. Insetos caiam pelo chão, pelo colchão, quando ela sentou-se ao seu lado.
Pegou sua mão e vermes lamberam sua pele. O contato era uma carícia. Suave e molhada. Sentiu uma ereção e seu coração disparou.
_ Como, meu amor?- perguntou ele.
_ Fique comigo!
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Ao passar pelo espelho pequeno no banheiro, ele olhou seu reflexo e a imagem refletida ali estava em paz. Estranhamente não sorriu como em outros tempos.
Lágrimas de agradecimento estouraram, manchando sua camisa, profusamente. Suas estruturas eram esbranquiçadas, agridoce, perfeitas. Rolavam devagar e grossas, como bulbos que eram arrancados da terra.
Vestiu sua melhor roupa e saiu com sua pá.
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Ao retirar a última pá de terra do cadáver, ele estranhou o odor de jasmim que exalava da cova onde estava.
Mariana era uma massa inchada de onde a vida pululava através de sua pele maquiada de terra. Insetos brincavam de esconde-esconde nela. Ele riu da travessura deles. Limpou-a devagar, polindo sua pele lívida.
Saiu da cova e ficou esperando pelo sinal.
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Caiu uma chuva forte, iluminada por relâmpagos e trovões. Mariana tomou seu banho.
O Sol saiu e Mariana secou-se esvoaçante ao vento quente.
Enquanto ele estava dormindo na cova junto a ela, sentiu seu abraço. Terra molhada. Raízes e benjoin. Mirra e jasmim perfumavam tudo, entrando por seu nariz, beijando seu pulmão. Sua boca engoliu seu estômago, sua vagina desceu líquida por suas pernas, enlaçando-o,vestindo sua ereção como uma roupa.
Seu ar foi expirado e o homem amou-a, esvaziando-se como um balão furado.
Flores eclodiram em seus poros, sendo misturados a podridão que a vida come.
Viu, sentiu e tocou como Mariana, tocando a existência através das lágrimas. Restou-se ali, alimentando-se dela e de seu amor até a infinidade das estrelas.
FIM.
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A ESTRUTURA DA LÁGRIMA
Short StoryUm homem e uma mulher ... morta. Um amor desvairado até as últimas consequências. Ande você iria numa viagem lisérgica entre a podridão e a loucura.