O CÃO AMARELO
Aconteceu assim: Eu tinha muita sede - desde a madrugada caminhei perdido por uma estrada de barro vermelho - Nada em todas as direções - Porem, quando entrou a tarde e o vento e o sol forte - numa cumplicidade sacana - transformaram tudo em poeira, cheguei onde a estrada se rasgou em duas - à direita pó, à esquerda mais do mesmo pó e, sentado entre os dois caminhos, um cão amarelo me olhava.
BERNARDO
Me chamo Bernardo - Nos últimos trinta anos não vivi numa casa que pudesse chamar de minha - Viajo - O tempo todo estou indo a algum lugar - O tempo todo deixo gente para traz - Escrevo - desde janeiro - um Romance - Abandonei o conto - já não sei poesia - Me assombra os dias um cão amarelo - um sonho recorrente - um cão que - acho - é o mesmo da história que meu avô tentou contar naquele natal de 76 - eu tinha dezesseis anos e muita pressa - não fiquei para ouvir - não sei como acabava a história - meu avo já se foi - encantou, diz minha mãe - levou com ele a história sobre um cão amarelo sentado em frente a uma estrada que se rasga em duas.
HELENA FALA DE BERNARDO E PRESSENTE A CHEGADA DE FLÁVIO
Talvez Bernardo seja só o que vejo - e não haja nada a dar suporte aquele sorriso gentil que me dá quando aparece - Alguns homens costumam ser assim: uma boa propaganda para um produto que não nos fara falta - talvez ele seja assim também - como um produto que eu não precise - que não seja fundamental para os meus dias e principalmente minhas noites - Eu sempre tive uma fantasia - de ser abordada (num inicio de maio) na porta de um Café - nessa cidade sem portas em que vivo - Ser abordada por um homem com o rosto escondido na sombra - me convidando a sentar - me oferecendo licor acompanhado de respostas - respostas a todas as perguntas, mesmo as que nem sei se faria - ele me falando de lugares onde eu poderia andar descalça - com os pés que sempre sonhei ter - pés de revista - e - naquele café - eu me lembraria de tudo que se pode conversar - e tudo que dissesse seria de uma ordem interessante e sedutora - e a risada dele me enchesse de coragem para continuar falando e aproveitar - até o último segundo - o silencio daquele home que me ouviria e que se apaixonaria por mim.
A ORIGEM DA DOENÇA DE HELENA
Vai por ali que ali tem Paz - Essa e outras mentiras estão escritas nas placas que mostram o caminho até a paixão - Não tem Paz - na paixão não tem Paz - e - para os que lá se aventuram - assim - de coração aberto (condição indispensável à entrada) - devo dizer que é um lugar cheio de pedras soltas - sem bancos para descansar - sem água ou sombra - e onde todas as urgências do corpo gritam o tempo todo - e a alma (tadinha: inocente) ouve vozes que não param de fazer promessas, muitas promessas - Helena tinha 25 anos
FLÁVIO
Bernardo me escreveu em março uma carta chatíssima mais ou menos com essas palavras - Tenho queimado meus conceitos e minhas verdades absolutas num forninho primitivo que construí só que fumaça e cinzas deste inventário me invadem e me expulsam de mim. Ontem dormi ao relento - se queixou ao final. Bernardo é um home óbvio - e suas cartas já não me comoviam - Temos sido amigos por toda vida - ele correndo o mundo - eu sempre aqui - nesse sitio - nesse pedaço de mundo que me reconhece