Ele se sentou no sofá, jogando a bagunça que ocupava seu assento diretamente ao chão. Olhou para um lado e para o outro, não achava o controle da TV. Estranho, pois havia o deixado no braço do sofá.
Levantou-se e ligou a TV, ao voltar-se de frente para a porta, viu novamente o bilhete deixado na porta pela sua mulher.
Passou as mãos no rosto esfregando os olhos, contendo um choro reprimido que inchava seus pulmões como que o faria explodir.
Fingiu ignorar o papel, voltou a se sentar e acabou achando embaixo de si o controle,puxou-o e mudou de canal.
Zapeou até encontrar um canal no qual passava um,culto religioso, pensava que isso fosse ajudá-lo
Não aturou dois minutos daquele programa, já estava farto de ouvir q a culpa de seus problemas era Satanás agindo em sua vida, cansou de escutar pedidos de doação à igreja e vendas de livros de auto-ajuda.
Zapeou novamente até perceber que nada na TV o ajudaria.
Voltou-se novamente à porta, leu a primeira linha do bilhete "Te amo, vida..."
Droga, era sufocante ler aquele bilhete, desde a primeira linha ele já sabia que algo errado estava por vir.
Esforçou-se para voltar ao normal, nada havia acontecido... Nada pra se preocupar,estava tudo bem
Era o que ele se forçava a acreditar, porém nunca conseguiu ser persuasivo com ninguém.
Foi até a cozinha tomar uma água, olhou na geladeira o que havia para comer, encontrou um pedaço de pudim, o qual havia sobrado na noite passada, pois sua mulher não queria mais, uma colher era o suficiente,pois ela não tinha fome.
Com os olhos marejando pegou o prato com o pudim etentou comer uma colher, os lábios trêmulos o impediam de mastigar.
Largou o prato em cima da pia, tentou engolir o doce com bastante esforço,sentindo-se um pedaço de sucata, atacando a si mesmo mentalmente. "Meu Deus, como você é patético, acha mesmo que comer isso vai ajudar a resolver algo? Como diabos você conseguiu afastar ela também? A culpa é sua sim, é sua, você sabe que ela era perfeita, mas você precisava reclamar de algo sempre não é? Qual a dificuldade de aguentar umas brincadeiras infantis de vez em quando? Te incomodava? Foda-se
Mesmo assim ela ainda era melhor do que qualquer coisa que você merecia, nunca mais você vai conseguir achar alguém que ature esse seu jeito... Como ela disse? Ah,é... Sufocante"
Cansado de 'escutar-se' , arremessou o prato contra a parede, formando uma mancha enorme e espalhando cacos por todo o cômodo.
Foi até o quarto, onde o guarda-roupas estava escancarado, com metade dele esvaziado e a outra cheia, porém bagunçada.
Puxou o cobertor procurando na cama suas chaves, sem achá-las
Retornou à sala lembrando-se que estavam já na porta. Puxou a chave , balançando de leve a porta fazendo farfalhar as folhas do bilhete
"Te amo, vida
Mas não suporto isso
Preciso que você me entenda..."
Não terminou de ler, pois não havia mais forças para resistir ao choro, sentou-se ali mesmo no chão, próximo à porta, apertando sua própria cabeça com as mãos, puxando os cabelos pra cima de olhos cerrados.
"Como você é deprimente, nem imagino seu futuro... Será mesmo que você tem um? Acho que não, pois todos os planos envolviam ela, não envolviam? Pelo menos os bons, eu lembro que você tinha um plano sem ela, mas tem bastante tempo, não tem? Lembro daquela noite como se,fosse ontem. Pena que o gás acabou antes de você acender a luz, não é mesmo? Se dissipou rapidamente e não havia mais faísca que realizasse o serviço... Os comprimidos também, estavam no frasco errado, não eram calmantes fortes, eram apenas balinhas que suas sobrinhas usavam pra brincar de hospital, e além de você não conseguir fazer o que devia ter feito, ainda estragou a brincadeira delas...
Aposto que você gostaria de ouvir a voz boa, nãp gostaria? Eu pareço muito cruel pra você? Sabe,isso é meio que engraçado, pois na verdade, eu sou a melhor das suas vozes interiores, todas as outras se foram e a ruim, que acredite, não era eu, resolveu que nem precisa intervir, pois sabe que você não precisa de incentivo pra acabar estragando tudo, ela leva fé em você,rapaz. Estou apenas te guiando pro caminho certo, sabe, tipo: acho que se você ligar todas as bocas do fogão, em 15 minutos tudo vai estar pronto, mas não confie apenas nisso, tome os comprimidos também, e quando ver que já é hora, acenda a luz"
Encharcado das próprias lágrimas, levantou-se cambaleando, e foi até a cozinha, ligou todas as bocas, inclusive a do forno, foi até o quarto, encontrou os calmantes, esses ele sabia estarem corretos,pois haviam sido receitados pra ela, que ultimamente sofria de insônia. Sentou-se à mesa com um copo d'água e contou os comprimidos cuidadosamente,pois não queria acabar consumindo mais que o necessário e acabar dando mais prejuízo do que o essencial. 40 deles deviam ser o suficiente. Jogou metade na boca, mastigou e engoliu, jogou logo em seguida a outra parte e repetiu o processo, ao terminar de beber a água,sentiu o cheiro do gás, estava quase pronto,deu o que sabia ser a última olhada em seu celular, no qual apareciam 12 notificações de mensagem dela, sem resposta nenhuma por parte dele, e a última dizia "espero que esteja bem sem mim, sinto por não ter falado pessoalmente, mas vc acabaria tornando td mais dificil do que deve ser" largou o celular na mesa, sentindo um grande peso nos olhos e vontade de dormir, sentiu que devia ao menos respondê-la, no escuro da cozinha tateou a mesa e encontrou o celular, entrou na conversa com ela,mandou um áudio ,sua voz tremia bastante"Está tudo bem,amor, vai ficar tudo bem,não se preocupe,quero apenas que fique feliz daqui pra frente, Téhmayz"
Foi até o interruptor da luz, posicionou o dedo acima do botão enquanto uma última lágrima escorria de seus olhos, acendeu a luz.
Na iluminação da explosão , se houvesse alguém junto à porta, seria possível ler a mensagem completa
"Te amo, vida
Mas não suporto isso
Preciso que você me entenda
Não posso viver assim
Não consigo nem mesmo viver mais
Quando você estiver lendo isso
Já terei doado todas as minhas coisas
Esta despedida é a nossa última
Eu lembro ter explodido contigo
Ter dito que você me sufocava
Porém a culpa não é sua de eu
Estar ceifando minha própria vida,
É mais que isso, só quero que saiba
Que te amo bastante e por isso
Estou te deixando sozinho
Porém livre pra ter uma vida feliz"
Nas cinzas da casa, o bilhete queimava lentamente ao lado da foto que havia sobrevivido graças ao porta-retrato que a protegeu do fogo.
Na foto via-se os dois abraçados, felizes e sorrindo,no tempo em que eles acreditavam que seu amor seria eterno
E realmente, de certo modo o amor deles se tornou eterno, inclusive na morte, acho que essa constatação os deixaria feliz, saber que nem mesmo a morte os separou
