FLOR ANÁLOGA À FLOR

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Então eu lá estava. Caminhando por entre as paredes repletas de quadros coloridos a me cercar como uma abóboda onipresente. Claro, também estava a menina com os cabelos pretos amarados. Não, ela não havia brotado. Já estava andando ao meu lado desde que adentrei aquele local. Naturalmente – e com muita vergonha – ela havia pedido minha mão: "Caminharemos juntos agora". Hesitei. No lapso de minha hesitação já havia tomado a decisão. Depois, atei minha mão à mão dela. Assim que houve o toque dos dedos, ainda eles se entrelaçando, eu disse: "Sem que queiramos, caminharemos apenas por três estações, começaremos do inverno. Pois nossa simbiose já se encontra fadada à morte". Então seguimos juntos.

Como éramos crianças ainda, a vida era sem sal, indiferente, ignorante, superficial e a inocência iniciara a fenecer. Minha inexperiência chegava a um nível de ridicularidade excêntrica, por esse motivo, a garota com os cabelos amarrados em minha mão guiava-me sem saber aonde íamos e tendo conhecimento do caminho a fazer.

Foi tudo comicamente pacato sem que percebêssemos. Passeamos em um mundo inteiramente cor de bege e salmão. A única concretude existente era o desembesto e a ausência de concretude dos objetos e ideias ao nosso redor e dentro de nós, derretendo... Morrendo e sendo desintegradas, ou melhor, transmutando-se, construindo -tijolo por tijolo - novos sonhos e ideais (esses, assim que nascidos, precipitavam então em seu gradual derretimento para fomentar o novo, o novo e o novo...). Mas éramos crianças, não havia percepção de todo mecanismo, de toda a construção... E, perdido da percepção motora da vida, ela era sem sal. A não ser pela prima sensação das mãos encostadas umas nas outras – no fim elas costumam arranhar-se.

Ao final da estação primeira, na estrada de terra cinza imersa nas brumas beges envolvendo, levemente e de forma dispersa, o ambiente completamente aberto onde caminhávamos, flores de luz foram projetadas de pequeninos poros no solo, elas clamavam pela atenção de qualquer um que passasse por elas. Todos ao seu redor as observavam. A exceção de mim e da menina de cabelos agora desamarrados. Nesse hiato de hipnotismo alheio das flores projetadas, a atenção das mãos voltaram-se para os rostos e às nossas bocas a trocar um único beijo caduco.

Após essa ocasião, ficava evidente, a cada passo percorrido, a iminente segregação entre nós. Tanto que em dado instante, os castanhos olhos dela fitaram-me. Seriamente. De forma penetrante. Então soube: era o inevitável fim. Aquela pequena boca me respondeu: "Devo ir só, pois tu és inerte e eu, a flor de néctar de outra flor." Em um ato de respeitável (in)compreensão, aceitei o inexorável e desatrelei as articulações de meu palmo da palma dela.

Dessa forma, lentamente, os cabelos negro-ondulados daquela garota curvaram-se ao redor de seu rosto e ombros, os cobrindo. As vestes (igualmente negras, foram absorvidas pela pele da jovem, tornando sua pele – antes brandamente morena – em um escuro opaco enquanto seu corpo se diminuíra a ponto de ficar da altura de uma flor, sendo isso exatamente no que havia transmutado-se: uma pequena flor negra de cabo opaco e pétalas sibilantes. Agachei-me perante a planta, e arranquei-a do solo sólido quando o único espinho de sua constituição furou meu dedo de maneira indolor. De onde, segundos depois, caiu uma singular e gorda gota de sangue vermelho, como um sol velho pronto para irromper em seu destino cósmico mórbido, propiciando, dessa maneira, as mais belas figuras do universo.

Depois de observar as pétalas, – antes cabelos – guardei a pequena negro-flor em meu bolso. Onde agora caminharemos juntos, entretanto de forma outra.

Flor análoga à florOnde histórias criam vida. Descubra agora