Momento e Eternidade

124 1 0
                                    

Era o fim.

O sujeito havia permanecido sentado, praticamente imóvel, durante alguns minutos. Acima dele uma iluminação dura, que criava vários contrastes de luz e sombra do pequeno palco da escola de dança. Usava uma máscara teatral das tragédias gregas e uma roupa collant colorida, com detalhes pretos que combinavam com os de sua máscara. As pernas ligeiramente abertas, com os joelhos flexionados, suportavam os braços cansados, que deixavam as mãos cobertas por luvas negras despencar.

Ao seu lado deitada no chão, imóvel como uma delicada boneca de porcelana, sua companheira de cena vestia a máscara da comédia, com um largo sorriso. Suas roupas eram basicamente as mesmas, embora a vestida no corpo esbelto da garota fazia com que sua silhueta curvilínea ficasse acentuada, enquanto no corpo reto e de músculos definidos do sujeito, apenas demarcava seu porte, que ainda era bastante imponente embora ele já não fosse mais exatamente um rapaz há alguns bons anos. O cabelo dela, de um dourado bem claro, se espalhava pelo chão, aleatoriamente, enquanto a considerável poça de sangue já parecia não mais procurar caminhos para se expandir entre a madeira do palco, dando claros sinais de que se manteria daquele jeito até que alguém se colocasse a macular aquela cena perfeita de paz, tranquilidade e pureza.

Aos pés do homem, uma pistola.

Diante do sujeito, policiais militares gritavam em plenos pulmões, apontando armas e se mobilizando taticamente. Ele não entendia exatamente o que eles diziam, a luz forte e a própria debilitação de campo de visão causada pela máscara não o permitiam definir rostos, apenas vultos aparentemente irados e com sede de sangue, mas aquilo não fazia diferença.

Nada mais fazia diferença.

Ele havia apontado a pistola para a garota pelas costas, ela nem viu de onde veio o tiro.

No momento do impacto, seu corpo caiu quase em câmera lenta. Foi arremessada para frente, deu algumas voltas sobre o próprio eixo e caiu estirado no chão. A máscara do sujeito impedia que as lágrimas que escorriam em seu rosto fossem vistas, do mesmo modo que a máscara dela impedia que sua última expressão facial, de dor e espanto, fosse contemplada. Mas não havia ninguém ali além deles dois para ver nenhuma das duas coisas. Se houvesse, teria ouvido o grito seco e rápido da garota no momento do impacto, assim como os soluços discretos sussurrados do sujeito. Mas era bem provável que alguém na vizinhança tivesse ouvido o disparo.

BANG!

A garota era a aluna que estava na escola de dança há mais tempo, tinha dezenove anos recém-completados e era provavelmente uma das melhores dançarinas amadoras em sua modalidade do estado. Havia uma prateleira cheia de troféus de eventos de dança na recepção da escola, uma boa parte era dela ou da equipe da qual ela participava. Ele já não participava mais de competições, raramente se apresentava junto dos alunos nalguma ocasião especial, como era o caso da apresentação para a qual eles ensaiavam naquela manhã.

Ambos estavam lá para ensaiar uma parte específica – e particularmente complexa – da peça que seria apresentada no final do mês, eram dois dos personagens mais importantes, embora não fossem os protagonistas: ele era o espírito da tragédia – ou da tristeza – e ela, o da comédia – ou, da alegria. Era a primeira vez que usavam o figurino, que merecia certa prática de uso, uma vez que tornava a visibilidade bastante comprometida por causa das máscaras.

Era uma escola de street dance, o gênero no qual ele havia se especializado e dava aulas já há alguns anos. Os demais alunos usariam roupas mais características, calças largas, camisetas e bonés, apenas os personagens encarados pelos dois se vestiam com o figurino diferenciado. A apresentação contava a estória de um protagonista que, cercado pelas alegrias e tristezas da vida, se colocava em situações de reflexão, passava por um grande conflito e, ao final, encontrava o equilíbrio. O roteiro carregava grande peso reflexivo, embora boa parte dos espectadores apenas estivesse interessada em contemplar a dança e a música, a apresentação em si era uma peça artística muito bem construída. Era dividida em três atos, sendo o segundo ato o momento onde os espíritos faziam grande cena.

Momento e EternidadeOnde histórias criam vida. Descubra agora