Pisando em Cacos de Vidro

21 1 0
                                    

- Naty, me vê mais uma fatia de torta...

O relógio acima do balcão marcava dez minutos para as 22 hrs. Eu estava chateado demais para voltar para casa... Minha mãe ainda era muito vulnerável e por causa disso tinha facilidade em sofrer. Não sei se por causa dos meus instintos masculinos, mas eu via isso como um defeito. Aceitar ser subjugado por alguém que não dá a mínima para nada além de si mesmo... Eu a amava muito para deixar isso acontecer de novo.

 Como eu não podia tomar um porre, resolvi me embriagar com gorduras insaturadas e coca-cola. Até pensei em ir para o apartamento da Helena, mas minha cabeça estava muito cheia... eu não queria envolvê-la em meus problemas. Pode parecer egoísmo meu, afinal... somos parceiro não somos? Mas eu sou assim, sempre com essa mania de querer carregar o peso do mundo nas costas sozinho. No fim, eu me pego abafando meu grito com as mãos enquanto piso em cacos de vidro.

- Aqui está, rs.

- Obrigado, flor.

Ela ficou parada na minha frente, analisando minha expressão... 

- Se quiser conversar...

- Ah, rs... não precisa... estou só um pouquinho chateado... não é nada demais. 

Com o garfo e a faca já preparados apontei para o prato que ela havia de por sobre a mesa.

- Pelo menos nada que não se resolva com um pouco disso, hehehe...

                                                     -----------------------------------

Aos poucos meus sentidos foram voltando... o som em meus ouvidos ia se tornando cada vez mais nítido, o solo da guitarra combinado com o timbre grave do contrabaixo e as batidas ritmadas desencadearam inúmeras sinapses em minha mente. Eu não lembrava de já tê-la ouvido antes... eu tinha essa mania, baixar as músicas e deixar elas ocupando espaço na memória do cartão. Uma vez ou outra eu me surpreendia com as pérolas escondidas... Aumentei o volume.

"...Who are you to change this world?..." 

"...Quem é você para mudar esse mundo? ..." 

Era algo totalmente diferente de tudo que eu já tinha ouvido. E olhe que eu já tinha uma experiência e tanto.

"...Kept inside I won't let go... 'Till I burn beyond control... " (29)

"...Preso por dentro, eu não vou deixá-lo sair...Até eu queimar além do controle..."  

Fechei os olhos novamente e fiquei refletindo naquilo. Aquela tão maçante realidade de ter sempre alguém te subjugando... dizendo que você não consegue fazer isso ou aquilo. Chega uma hora que fica tão pesado que você mesmo começa a desacreditar em si mesmo. É como um monstro que se alimenta de nossa força de vontade...  Quanto mais o mundo vai abrindo suas portas para nós, mais o teto cai sobre nossas cabeças... nos pressionando.

Quando a música acabou desliguei a reprodução automática e desconectei os fones. Conferi as horas.

- CA-RA-LEO.... JÁ SÃO 22 HRS !!! Porra...dormi demais...

Saí da cama quase cambaleando, abri a porta... as luzes estavam acesas...

- Estranho, não lembro de tê-las acendido...

Cocei minha cabeça, senti a oleosidade do couro cabeludo na ponta dos dedos... Me espreguicei de forma a alongar todos os músculos das minhas costas e fui me arrastando para o banheiro... iam ser longos 15 minutos lavando meu cabelo.

                                                   -----------------------------------------

Afrouxei a tarraxa e vòila,  a primeira corda se desprendeu da pestana. Peguei minha chave de fenda a fim de desparafusar a tampa da ponte... Eu era um sujeito bem consciente, gostava de guardar minhas cordas usadas... a gente nunca sabe quando pode dar merda, né?

Eu estava lá, aparentemente todo concentrado na minha tarefa, quando de repente a chave escapuliu por entre meus dedos e se acomodou em algum lugar debaixo de minha cama.

- Ah... que ótimo...William... Perfeito!

Respirei fundo tentando conter a frustração, em seguida me abaixei e pus minha mão por baixo da estrutura de madeira... ela não pode ter caído assim tão longe... Depois de dois minutos tateando às cegas, resolvi me aventurar de corpo inteiro por baixo da cama. Faziam algumas semanas que a arrumadeira não dava uma geral no meu quarto... então pode-se dizer que haviam bolinhas de papéis suficientes para gerar um bom lucro para uma reciclagem.

Fui me arrastando com os cotovelos, entrando cada vez mais fundo naquele meu esconderijo de infância... este foi meu lar muitas vezes quando eu quebrava algum vaso de minha mãe ou sem querer riscava um documento de meu pai. Eu não era uma criança hiperativa, apenas o mundo conspirava contra mim... Rs... parece que mesmo depois de adulto isso nunca vai mudar.

Finalmente minha pele encostou em algo frio... com certeza era a chave. Eu não tinha mais idade nem imaginação para acreditar que haviam monstros debaixo da cama. Peguei o objeto pontiagudo e comecei a me arrastar em marcha ré, porém... em dado momento eu cometi a idiotice de levantar a cabeça... 

- Droga!

Instantaneamente levei a mão ao local dolorido massageando a área e num impulso voltei a fazer meu percurso em direção a saída daquele lugar escuro e apertado. Quando já estava saindo, minha mão deslizou sobre um papel, ele tinha uma textura totalmente diferente de uma folha de caderno ou uma ofício. Intrigado, resgatei o papel retangular do meio de minha "bagunça" e logo que me vi livre daquele ambiente claustrofóbico pus minha chave sobre a mesa sobre a qual repousava minha guitarra e analisei a fotografia. Estava meio amassada, mas ainda em bom estado. As lembranças me atingiram em cheio.

Naquele dia o tempo não estava nem quente nem frio, o vento soprava marotamente as folhas das árvores. Dentro do ônibus a algazarra era terrível, mas estar ao lado dela me fazia ignorar todo o resto...

Pisquei os olhos com força, me libertando daquelas imagens... Olhei novamente para a foto, eu podia rasgá-la, tocar fogo ou simplesmente jogar no lixo... seria bem mais conveniente deixar que o passado nunca afetasse o presente...

Infelizmente eu fiz exatamente o contrário...

                                               ----------------------------------------

Não foi nada, rs

Digitei rapidamente as palavras. Não tinha necessidade de contar para o Gustavo o porquê eu estava irritada. Eu só queria que aquela sensação ruim sumisse de dentro do meu peito... Eu estava com raiva, queria chorar, gritar... poderia bater em qualquer pessoa que atravessasse a minha frente. Por um momento me arrependi de não ter dito tudo o que estava entalado aqui dentro, poderia ter mandando Max ao inferno e falado os piores e mais escabrosos palavrões do mundo mas isso me daria um alívio apenas momentâneo, e depois? Ele não ia parar sabendo que me atinge, que de algum modo me faz reagir e ficaria todo cheio de si. Sem toda aquela nuvem de ilusão vendando meus olhos eu enxergo claramente como ele é.

Você quer que eu te busque pela manhã?

A pergunta dele me fez parar de pensar um pouco naquela minha crise interna. Com ele eu me sentia muito bem. Parecia o tipo de pessoa que eu podia confiar de olhos fechados... Eu estava encantada com o Gustavo, ele despertava inúmeras sensações em mim, desejos... sentimentos... mas nenhum deles parecia ser profundo o suficiente. Havia uma trava aqui dentro de mim, eu nunca mais seria como antes pois mágoa e o ressentimento me mudaram. Ás vezes é como se eu tivesse me iludindo e a ele também, usando uma pessoa para tampar o vácuo em meu peito ao mesmo tempo que me forço a sentir raiva de alguém que eu amei. 

Eu desejo que isso seja real, que minhas lembranças sobre tudo  não me façam querer chorar. Eu tomei a decisão certa... eu quero acreditar nisso, eu preciso acreditar.

Claro, estarei esperando por você...

Convergindo (Em Construção)Onde histórias criam vida. Descubra agora