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A vida não é justa. Os leões diários que devemos matar estão sempre a dois, três passos à nossa frente.

Lá estava eu, dia bom. Fim de semana chegando. Depois de sair do armazém, parei no primeiro bar de beira de estrada e pedi um trago. Sentei. O bar de mesas empoeiradas, de pôsteres velhos e acabados, me consumia. Eu era um retrato de um tempo perdido naquele ambiente tosco e sem graça. Era ali que havia marcado com Rita. Moça bela, de jeito matuto, de sorriso esvoaçante e corpo de mulher. Ela iria me encontrar ali, como de costume. Rita, não que ela soubesse, ou ainda devesse, era a mulher da minha vida. Minha Rita bonita, meu doce de goiaba.

Saí do armazém de soja às quatro, passei pelo ponto de chapa e, cheirando à lavanda, pedi um trago enquanto Rita não vinha. Sentei e, da janela do bar, via o movimento da pista. Era uma estrada interestadual que passava por uns cinco estados, salvo engano. No meu inconsciente, só imaginava o dia em que levaria Rita para ver o mar. Era seu sonho. Desde moça sonhava em molhar seus pés nas águas salgadas na beira da praia, mas nunca teve competência, grana ou expertise para sair do interior grotesco e do semicerrado brasileiro. Talvez aquele trajeto me levasse a Bahia, ao Rio de Janeiro, Espirito Santo, talvez nem tanto, de certo mesmo, só o sonho de ver o brilho do mar refletido nas retinas de Rita.

Toda sexta, depois do expediente, ela, como recepcionista num escritório, e eu, operador de máquina, perdíamos tempo vendo o sol se pôr no fim da rodovia pela beira da estrada. Enquanto Rita queria ver o mar, eu só queria ver o mundo com ela debaixo dos meus braços feitos transeunte sem destino. Queria mesmo era jogá-la na boleia de um caminhão, que fosse meu ou de um qualquer, e sumir no fim do mundo; saber se há algo depois do mundo agigantado como ele se apresenta.

Anoiteceu e Rita não veio. Não ligou, não deixou nenhum recado, não enviou alguém para dizer que estava de fastio, cansada de mim ou perdeu a hora tentando chegar. Ela não veio, nem mesmo quando o sol se foi, ela veio. Eu fiquei meio assim embaraçado porque ela sempre vinha e antes ou depois que o sol tivesse se posto naquela sexta, no fim daquela rodovia, Rita me deixou sentado sobre aquela cadeira de metal amassada e velha, cheirando a poeira, fumaça de caminhão e farelo de soja. Eu era uma incongruência para quem passava pela rodovia indo, quiçá, para o Rio de Janeiro, Bahia ou até mesmo Ceará.

"O senhor queira me desculpar, mas anoiteceu e eu tenho mulher e filho em casa me esperando", veio me dizer o dono do bar.

"Só mais um".

"Nem fudendo! ", retrucou o velho barbudo e fedendo a suor de uma semana sem jogar água no corpo.

Fui expulso. Achei que Rita ia aparecer. Esperei surgir do nada uma luz; da estrada, uma esperança, do beco entre os armazéns, um gesto. Um ato obsceno no meio dos armazéns como a gente fazia depois de ver o sol descer sobre o asfalto da rodovia. Mas ela não veio.

Ela sempre vinha, mas aquele sexta-feira ela não veio e eu fiquei descompassado porque ele me deixou no vácuo na beira daquela estrada sem fim.

Tomei o último trago e, cambaleante, me ergui e deixei a birosca do velho fedido. Do lado de fora, o céu, sem nuvem para esconder o brilho da lua que, evasiva e diferentona, fazia tudo parecer a meio tom de luz. Era tudo tão lindo e eu não podia dizer a Rita sobre a beleza da lua porque ela simplesmente não apareceu antes do pôr do sol.

Vasculhei a região. Mesmo que meio ébrio, via que Rita não estivera ali. Devia ter estado, mas não veio. Se escondeu de mim, talvez. Fugiu com alguém melhor do que para ver o mar, quiçá. E a vontade de saber o que se passou, o porquê de não ligar, avisar, mandar dizer alguma coisa, me impregnou de incertezas.

Meu doce de goiaba era uma belezura. Era a mais formosa da região que habitava às redondezas da rodovia. Nem sei o que fez Rita gostar tanto de mim. Acho que ela via a Bahia no meu olhar. Talvez ela nunca tenha me amado de verdade. A verdade é que ela só via em mim as areias perpendiculares da beira da praia no sotaque baiano que soprava palavras doces no seu cangote macio e cheiroso. Rita me usara, talvez. E agora, por falta de compromisso ou desrespeito, ela se desiludira e me trocou por um qualquer que a levou para ouvir a sinfonia da água batendo contra a areia da praia.

Devia eu tratar de guardá-la num passado esquecido e comer as caipiras das beiras de estrada como se come galinha no almoço de domingo. Devia comprar cigarro, cachaça ou uma motoca para ganhar comida a qualquer hora na beira da rodovia. Talvez eu tenha perdido tempo amando demais aquele doce de goiaba que só via em mim um monte de areia escura mal posta, maltrapilha e maltratada. Rita já era. Agora, talvez, encontre consolo nos braços de Iemanjá. Certeza de que esta era mãe daquela.

Atravessei a pista depois de esperar meia dúzia de carros, que passavam por ali fazendo uns 200 quilômetros por hora. Vez ou outra, alguém morria naquela região. E, mesmo assim, nenhuma autoridade tomava providência.

Para ir até o barraco onde eu dormia, era preciso atravessar um pequeno matagal que ficava depois das casas velhas e dos armazéns abandonados. E, seguindo por esse caminho, cabisbaixo e entristecido, me fui. Já estava desiludido e só queria chegar em casa para repousar meu corpo cansado depois da labuta naquele lugar fétido onde, por vezes, eu me sentia como um recheio para tanta soja fedida.

Meu cansaço era tanto que os tragos tomados inda pouco no bar da beira da estrada, pareciam ter duas vezes ou mais de teor alcoólico que, de fato, tinham. Eu estava bêbado, por certo. Era certo que estava. Antes de alcançar o matagal, percebi que havia algo de errado na entrada de um armazém em ruínas. Curioso e sorrateiro, feito gente que não tem o que fazer, me pus a observar o que podia haver ali. Me arrisquei. Caminhei alguns passos e me vi na entrada, do lado da porta de ferro retorcido. Qualquer toque naquela estrutura poderia ser fatal e, de tal forma que eu estava, não queria proceder para saber o que viria depois dali. Ressabiado, quis voltar e, dei de costas para o local. Dois, três passos e voltei para a trilha malfeita que me levaria até o barraco, além daquele lugar.

"Covarde! "

Que tipo de homem me tornara? Como poderia ter a audácia de seguir por aquele caminho sabendo que ali dentro poderia ter alguém precisando de mim? Não teve como não pensar nessa hipótese e, quando dei por mim, já tinha ultrapassado o portão velho e enferrujado e estava no lado interno e escuro daquele armazém que, tirando os feixes da luminosidade externa, era breu.

Andei por ali para saber se havia algo de errado. Poderia ser uma desova, um motel barato para as quengas da rodovia, uma cracolândia, mas, àquela altura, não havia desejo, tesão ou qualquer desvio de conduta acontecendo naquele antro marasmado. Nada. Ninguém. Apenas uma distração pra mim que já poderia estar chegando em casa. Dei a volta e tentei seguir meu rumo.

Por desleixo, desaviso ou inocência, morri ali. Antes de morrer, me agarrei à Rita que estava ensanguentada do lado d'onde meu corpo caiu. Ela morrera e eu, antes de me apagar, vi seu olho querendo me dizer adeus.

Não morri de vez. Era apenas um desfalecimento anestésico que me tomara desde que caí. Talvez uma rajada, uma bala, uma pedra, um porrete, mas ainda conseguia perceber que algo estava me fazendo viver dentro da carne morta que me segurava ou não deixava Minh 'alma se libertar de vez.


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⏰ Última atualização: Feb 21, 2017 ⏰

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