Clarice [Capítulo único]

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Por um instante, Clarice jurou ouvir a maçaneta girar e a porta se abrir num ranger doloroso. Seu olhar se perdeu, seu corpo se retraiu e pegou-se vagando nos próprios pesadelos.

— "Ele chegou. Ele tá aqui!" — Pensou bem baixinho, com medo que mesmo em pensamento ele pudesse ouvi-la. Levou a mão a boca se auto-censurando e tentou imaginar no que faria a seguir baseado num extinto de sobrevivência falho.

— "Não importa o tamanho do diabo, é seu dever servi-lo" —

Eram as palavras da sua mãe. Enxergava nela um exemplo de força, de luta e de sobrevivência. Mas infelizmente, não era como ela. Clarice era definida como fraca, medrosa e freqüentemente queria apenas mergulhar em sua cama e chorar por não ser capaz de cumprir com seu papel. Mas quando se está no inferno, não existe um local seguro. Não existe choro que não possa ser escutado, transgressão que não possa ser punida. Era como se fosse sufocada pela angústia, sem ter pra onde correr ou onde se esconder.

A porta realmente se abriu. Mas não num ranger doloroso como imaginou. Ela recebeu um forte tranco, se mantendo ainda trancada. A maçaneta girou algumas vezes e, novamente, a porta foi forçada, até que finalmente cedeu.

— " Eu sei que você está comigo hoje. Eu sinto você. Eu rezei por isso. Porque não me ajuda? Porque apenas fica aqui, a observar? Eu preciso muito... muito de você. Por favor..." —  Pensou imediatamente ao ver que o diabo estava agora em sua casa. De posse do seu corpo, da sua alma. Se ergueu e o encarou, olho no olho, reunindo o pouco da força e coragem que possuía, mas que era destruída dia após dia. Respirou fundo. Lá estava ele. Frente a porta, sujo, fedendo a álcool e com o cabelo desgrenhado. —  "O diabo tem muitas formas. Feio ou bonito, você terá o que você merece. Não deve lhe negar submissão." —

Tais palavras pareceram nunca entrar completamente na sua cabeça. Como poderia ser socialmente aceito entre os seus, entregar-se como uma oferenda a uma vida de servidão? Renegar sua própria existência em pról de uma missão de origem secular desconhecida. Mas com o curto espaço de tempo que perdeu com conjecturas sobre o seu calvário, lá estava ele, velóz e sorrateiro, deslizando para trás do seu corpo e descendo uma das mãos enrugadas até entre suas pernas e deixando o hálito quente e alcoolizado entorpecer os seus sentidos enquanto a barba mal feita roçava em sua nuca

— Preciso descarregar o estresse hoje. Fica quietinha e deixa o papai se divertir, ta bem? —

Ele possuía quase o dobro da sua idade, mas isso não era problema. Seu corpo era flácido e cheio de pelos, mas para ele, não haviam padrões. E de forma impetuosa, girou o corpo de Clarice, a segurando pelo braço, e invadiu a sua boca com um beijo que a fez se contorcer. Fechou os olhos, não por ser o costume, mas porque não queria vivênciar o pesadelo que mais uma vez se tornava real. Mas deixar-se na mãos dos demais sentidos fora pior. Sem a visão, se sentia cada vez mais violada de acordo com que a mão avançava, sem delicadeza, sem permissão.

Sem a visão, sentiu o corpo dele a engolindo. Tomando pra si num abraço sufocante, como se fosse um objeto de prazer. Cega, sentiu a língua dele invadir a sua boca e, nesse instante, as palavras antes proferidas vieram novamente a tona.

— "Fique quietinha, deixa o papai se divertir" —

Tal sentença ecoou inúmeras vezes em sua mente, até que seu corpo, detentor das próprias regras, reagiu, trazendo um refluxo que a fez vomitar, dando apenas tempo para empurra-lo para trás.

— Mas que... Mas que porra é essa?! — Sua expressão agora se configurava no que Clarice considerava o mais puro terror. Ela sabia onde a noite iria terminar e isso a levou aos prantos. Esperançosa por um dia atípico, estava previamente maquiada e vestia um vestido de renda feito por sua mãe antes de falecer, como presente de casamento. Acabará de completar 27 anos naquele dia. Pensou, por algumas horas, que ele se lembraria. Não se iludiu com uma suposta esperança de um dia feliz, contudo, se deu por satisfeita e regozijou por algumas horas pela simples ideia de um dia de paz. Estava tudo arruinado.

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