- Vá embora - falei o mais sério que podia, no tom mandão que toda mulher domina. Eu estava de olhos fechados, mas mesmo assim sabia que me dedo apontava da mala para porta.
- Não. Você sempre diz isso. E nós sempre voltamos. Já ouvi isso um milhão de vezes.
Ousadia de Guilherme me confrontar assim. Ele sabia o quão poderosa eu podia ser se quisesse. Ele sabia das coisas que eu podia fazer. Mas eu sabia que já tinha feito isso um milhão de vezes antes. Eu não era esquecida, conseguia lembrar perfeitamente de cada vacilo que ele tinha dado nos nossos anos de amor que fora se desgastando.
Maldito antigo amor.
- Retire o que disse - eu falei lentamente, cerrando os dentes. Eu estava me contendo para não explodir. Aquela seria nossa despedida e seria no mínimo elegante. - E depois vá embora.
Eu estava pirando por dentro. Queria chorar e chorar mesmo. Gritar no ouvido dele o quanto estava farta de ser despedaçada a cada festa. Queria que ele enxergasse quão farta eu estava daquilo.
Daquele antigo amor maldito.
Ele parecia não se preocupar com o fato do meu lábio estar tremendo enquanto eu falava. Minha voz saia trêmula. Ele parecia não se importar com o fato de eu estar quase chorando, arrasada por causa daquele homem maldito.
E isso só me fazia odiar mais esse ser humano. Cada parte do meu corpo queria bater na cara daquela pessoa até que minhas mãos não pudessem mais fazer isso.
E eu não era agressiva.
Mas Guilherme me tirava do sério.
Por mais cansada que eu estava, por mais decidida, aquela coisa acabava comigo. Me deixava em pedaços. Mesmo que ele tivesse sido um completo babaca, eu não podia deixar de ama-lo. A gente ainda tinha os bons momentos, o riso que não podia ser esquecido, nossas noites incríveis. Mas aquele velho amor era do tipo que partia meu coração.
Naquele momento, minha cabeça se questionava o motivo de ter aguentado tanto. Me questionava a razão para eu continuar voltando para os braços de Guilherme mesmo sabendo das coisas ruins que ele fazia. Outra parte do meu cérebro, no entanto, culpava a mim mesma por ter romantizado aquilo até o fim, ainda com esperanças de que seríamos o casal perfeito.
Encarei a camisa dos Smiths que eu tinha comprado pra ele no verão, esperando que ela me desse mais um motivo para pedir que ele fosse embora. O verão passado tinha sido, de fato, o pior da minha vida com ele ao meu lado.
Sem detalhes. Ainda consigo sentir o cheiro de protetor solar da marca mais barata da loja, a brisa quente. A dor daqueles dias ainda arde no meu peito e eu tenho que me segurar para não joga-la ali mesmo.
- Saia da minha casa - eu falei pela última vez, mais firme do que nunca, retomando o tom mandão.
Ele me olhou, tentando confirmar se eu estava mesmo falando sério. Eu balancei a cabeça indicando que sim.
- Não é de hoje que você troca uma mulher por uma qualquer. Guilherme, não é de hoje. E qualquer dia, se alguém conseguir fazer você perceber que perdão não é pra sempre, fique com essa pessoa. Você não a merece, eu sei. Talvez até lá fique leal o suficiente. Mas não vai rolar. Não aqui. Nem hoje.
Ele pareceu perplexo com as minhas palavras, que pareciam ter funcionado tanto quanto um tapa na cara. Eu sabia que ele tinha a capacidade de melhorar, mas eu não podia suportar nem mais um segundo naquela situação maldita. Como eu sempre digo, ele vai perceber o que tinha em mãos quando isso simplesmente voar.
Mas eu já estava cansada desse antigo amor. Mesmo que ele volte totalmente diferente e implore de joelhos por tudo, ele não vai ter. Não mais.
Guilherme se levantou, passando a mão pelo cabelo, de frente pra trás. Suas mãos pareciam um tanto trêmulas, mas ainda ele continuava sem algum tipo certo de reação. Estava incrivelmente quieto.
Ele puxou a mala pra si e tirou os cabides. Simplesmente jogou na mala as roupas desarrumadas. Estava com uma calma indescritível. Se movia lentamente, como se esperasse que em algum momento eu mudasse de ideia. Talvez estivesse procurando alguma forma de se redimir ali mesmo.
Respirava fundo, podia ver que também estava tentando não perder a calma. Suas mãos pareciam tremer um pouco, podia estar prestes a chorar. Pelo o que conheço, Guilherme nunca faria isso. Muito menos na minha frente, sendo que sempre tentava pagar de macho.
Sentei na cama, esperando que terminasse, mas ele não parecia estar com pressa. Não parecia se importar. Eu só queria que terminasse o mais rápido que podia e sua calma estava me deixando irritada.
Sem querer, deixei escapar uma lágrima, que limpei rapidamente, ainda olhando ele jogar as coisas na mala. Sua escova que eu usava sem perceber, o perfume que eu já havia enjoado, o chinelo que ficava gigante no meu pé. Ele pegou tudo que podia e fez entrar na malinha.
Cada parte dele estava entrando naquela mala com uma memória. Eu me perguntei se ele queimaria ou apenas doaria para carentes.
Caminhou até mim. Parecia querer me beijar, mas eu coloquei minha mão do seu peito, mantendo uma distância aceitável. Olhei no fundo dos seus olhos. Não pareciam tão profundos como antes. Naquele momento eu não conseguia pensar como ele era lindo. Eu sabia que tinham segredos nunca revelados ali. Os olhos apenas faziam parte de um cara babaca. Quando eu reconheci isso, soube que uma parte do amor tinha ido.
Podia deixar de gostar de Guilherme, mas algum cordão ainda me prendia a ele. Me ligando ao passado. Eu não estava disposta a cortar esse cordão nunca. Ninguém se sabe quando um fio sustenta tudo. E ele parecia sustentar muita coisa.
Mas eu não o amava mais. Não mais. Não como antes. E naquela nossa troca de olhares, ele conseguiu ver o quão decidida eu estava.
Eu já tinha perdido muito da minha noite por ele.
Então nós dois saímos pela mesma porta pela última vez. É só agora, procurávamos destinos diferentes.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Quem Canta um Conto
Short Story"Quem Canta um Conto" apresenta uma coletânea de pequenos contos inspirados em músicas de diferentes gêneros e cantores. Mas é aquele ditado, "quem um conto canta, seu males espanta".