Fogo

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Um conto de Uma História Bárbara

(Contém spoilers da história principal)


I


Ele não esperava que ela tivesse tanto fogo dentro de si.

Não, não o entenda mal. Ele sabia muito bem com quanta paixão ela era capaz de defender aquilo em que acreditava, o que já de si era um indicativo de que a frieza não passava de um disfarce. Que nunca o enganara, diga-se de passagem. 

Tristan tinha adivinhado aquela chama queimando nela, e sempre vinha se aquecer à sua luz.

Mas havia certa distância entre um entusiasmo ideológico e atacar tudo com paixão... a paixão com que Berna atacara os lábios dele um momento atrás. Os braços dela mantinham o pescoço do jovem guerreiro preso com a força de cadeias de ferro. Não que ele fosse fazer esforço para escapar dessas cadeias, de modo algum.

Com o vigor renovado por algumas horas de sono, os perseguidores provavelmente longe, a lua brilhando acima deles e os sons e cheiros da floresta recheando de frescor a atmosfera, aquele fogo era tudo o que ele desejava – mesmo não esperando – encontrar. Casava perfeitamente com o abrasamento que o toque dos lábios dela causara em seu corpo, preparando-o para coroar agradavelmente a aventura da fuga.

Tristan afastou um pouco seu rosto para olhá-la por um segundo, a silhueta dela contornada pela luminosidade alaranjada da fogueira que crepitava logo atrás. Pétalas de margarida ainda se escondiam nos volumosos cabelos da princesa, e a mão de Tristan mergulhou avidamente entre os pontos brancos, enquanto a destra pousava nas costas da garota, puxando-a carinhosamente para mais e mais perto.

E então, um rompimento. Um empurrão no peito. Uma cintura escapando de suas mãos. Ele ainda procurou os lábios dela no ar um instante, antes de se dar conta do que tinha acontecido, e abrir os olhos espantados a tempo de ver a garota se deitando do outro lado da fogueira.

– Você me beijou, eu te beijei; você me salvou, quando eu te salvar estaremos quites – Berna se enrolou na capa e lhe deu as costas, numa clara indicação de que as fronteiras estavam fechadas para ele. Por tempo indeterminado. – Boa noite.

O jovem guerreiro passou um bom momento a encará-la através do fogo – literal, agora – que os separava. Piscava, como um peixe boquiaberto, se perguntando o que é que estava acontecendo. Bem diziam os homens mais velhos da aldeia que as mulheres são criaturas difíceis de entender na sua lógica própria. 

Berna mais que todas.

Ele chegou a estender uma mão em direção à garota. As chamas da fogueira lamberam sua destra, e ele a recolheu. O fogo externo, pela dor, apagou o fogo interior e devolveu-lhe as faculdades mentais.

Com um suspiro, o rapaz se pôs de pé, apanhou a espada e se afastou alguns metros para a beirada da clareira. Se o papel que lhe cabia era o de um guarda-costas, ele o desempenharia sem reclamar.

Respeitaria a parede de fogo que Berna acendera entre eles, até que se extinguisse pela confiança construída. Não tentaria cruzá-la a força, para não se queimar... e, principalmente, para não a chamuscar, a ela, sua preciosa e conscienciosa margarida.    

II


E lá estava ele, com ela entre os braços novamente, tendo saltado a parede de fogo. O que eram uns chamuscados nas roupas que já estavam cheias de rasgões? O que eram possíveis queimaduras para quem tinha acabado de quase se afogar?

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