NONA PARTE -O QUE É ARISTOCRÁTICO?

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  257- Toda nova elevação do tipo "homem" foi até aqui obra de uma sociedade aristocrática — e sempre será assim, isto é, será sempre inegavelmente devida a uma sociedade que tem fé na necessidade de uma grande escala hierárquica e de uma profunda diferenciação de valor de homem a homem e que para chegar à sua finalidade não saberia fazer menos que escravizar sob uma forma ou outra. Sem o "pathos" da distância que nas cede decisiva diferença de classe, do constante olhar ao redor de si e sob si das classes dominantes sobre pessoas e instrumentos,e de seu constante exercício no obedecer e no comandar, em manter os outros opressos e distantes, não seria nem mesmo possível o outro misterioso "pathos", o desejo de sempre novas expansões das distâncias entre a própria alma, o desenvolvimento de estados sempre mais elevados, mais variados, distantes. maiores. tendentes a alturas ignotas, logo à elevação do tipo "homem", o incessante triunfo do homem sobre si mesmo para adotar em sentido super moral uma fórmula moral. Certo: não é necessário tecer ilusões humanitárias acerca da origem de uma sociedade aristocrática(portante da base da elevação do tipo "homem"); a verdade é dura. Digamos, sem meias-palavras, como começou na terra,até agora, toda civilização mais elevada.Homens de uma natureza ainda primitiva, bárbaros no mais terrível sentido da palavra, homens de rapina, ainda de posse de indômita força de vontade e do deseja de dominar se precipitaram sobre raças mais fracas, mais pacíficas que. se ocupavam talvez do comércio ou do pastoreio, ou ainda uma outra civilização mais podre, que lançavam os últimos palpitares de vida em raios fúlgidos do espírito e da corrupção... A casta aristocrática sempre foi nos primórdios amais bárbara; a sua preponderância é procurar não a força física, mas a da alma — eram os homens mais completos (aquilo que quer significar também "as bestas mais completas"). 

258- A corrupção, indício manifesto que entre os instintos ameaça aanarquia, e que o edifício fundamental das emoções que sechama "vida" é abalado; a corrupção. segundo o organismo emque se manifesta é algo de fundamentalmente diferente. Se, porexemplo, uma aristocracia como a da França. no começo darevolução, com uma náusea sublime renuncia aos seusprivilégios e sacrifica a si mesma a uma exageração do seusenso moral, portanto, esta é corrupção — é o último ato deuma corrupção secular, através da qual, pouco a poucorenunciou às suas prerrogativas senhoriais e se rebaixouexclusivamente às funções reais (para degradar-se atétransformar-se no ornato e pompa da corte). O essencial numaboa e sã aristocracia é que esta não se sinta como função, sejade um rei ou de uma comunidade, mas último significado e amais alta justificação deles, e que recebe de boa consciência osacrifício de inumeráveis indivíduos, que, por causa dela,devam reduzir-se a serem homens incompletos, escravos,instrumentos. O seu credo fundamental deve resumir-se nisso.que a sociedade não deva existir pela própria sociedade, massimplesmente como base, como alicerce, para servir desustentáculo, de meio de elevação para uma espécie eleita deser para que possam atingir os seus altos misteres e de modogeral, uma existência mais elevada; ao lado do cipó fixado aosolo da Ilha de Java, o cipó matador — que se prende aocarvalho para subirem acima dele e para lançar à esplêndida luzdo sol a pompa de suas flores e expor então ao mundo a suafelicidade. 

259- Abster-se reciprocamente de toda ofensa, da violência, dodesfrute, equipar a própria vontade à de outro; isso pode passar,a grosso modo, por um bom uso entre indivíduos, quando seinterpõem certas condições (isto é, uma real semelhança deforças e de valorações). Mas se se desprezassem estascondições iniciais e se tomassem aqueles princípios comocondições básicas de uma sociedade, isso se revelariarapidamente aquilo que é na verdade, vontade de negação davida, como princípio de dissolução e decadência.Aqui convém aprofundar o pensamento e pôr de parte todosentimentalismo: a vida é essencialmente uma apropriação,uma violação, uma sujeição de tudo aquilo que é estranho efraco, significa opressão, rigor, imposição das próprias formas,assimilação, ou pelo menos, na sua forma mais suave, umaproveitamento mas porque depois sempre deveremos usar taispalavras, em que de tempos mais remotos está inserida umaintenção caluniosa?Também uma corporação, na qual, como indicamos maisacima, os indivíduos se tratam como iguais (isto acontece emtoda aristocracia sadia) — deve, embora represente um corpovivo e não um corpo moribundo, fazer nas próprias relaçõescom outros corpos tudo aquilo que são obrigados a abster-se osseus componentes nas suas relações reciprocas; essa deverá sera vontade de dominação, desejará crescer, aumentar, atrair,adquirir predomínio — não já pela moralidade ou imortalidade,mas unicamente porque "vive" e porque a vida é a vontade depotência.Mas em nenhum outro ponto além disso a consciência doseuropeus é geralmente mais esquiva a toda sugestão,desvanece-se, assim, até mesmo sob roupagens científicas, deum estado social vindouro que não terá o "caráter da fruição"— ouço isso, como se alguém prometesse inventar uma vidaque devesse abster-se das funções orgânicas. A "fruição" não é um indício, o, caráter de uma sociedade corrupta ou imperfeitae primitiva; isto é uma parte intima da essência de tudo aquiloque vive, porque não é uma função orgânica, uma conseqüênciada verdadeira vontade de dominar, que não é outra coisa que avontade de viver. — Admito que como teoria isso possa seruma coisa nova — na verdade esse é o fato substancialmenteprimitivo em toda a história, que se tenha pelo menos acoragem de ser sincero consigo mesmo! 

Além do bem e do mal - Friedrich NietzscheOnde histórias criam vida. Descubra agora