No abismo dos olhos

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Naquele dia, ocorreu algo muito estranho

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Naquele dia, ocorreu algo muito estranho. Era uma tarde ociosa de céu  ensolarado e clima abafado. Estávamos na nossa cafeteria favorita,  sentados do lado de fora tomando alguma bebida quente. O assunto entre  eu e ela havia acabado - ou talvez sequer começado - e experimentávamos  um silêncio confortável.

Entediada, minha mente começou a divagar  pela cena. O clique das moedas no caixa, o cheiro de cigarro do  atendente, as pessoas caminhando na rua, o ciclo do semáforo se  repetindo eternamente. Passeei por cada detalhe oculto do momento. Por  fim, a formiga no chão me levou até os pés dela. Escalei suas pernas,  quadril, ombro, pescoço e encontrei sua face estática diante da minha.  Embora voltado em minha direção, seu olhar me transpassava efugia para  bem longe dali.

Aproveitei sua ausência, me apoiei em seus lábios  e, sem ser percebido, contornei suas bochechas me espremendo contra o  nariz para finalmente chegar neles. Seus olhos. Não foi difícil  percorre-los, uma vez que mal piscavam. Deslizei sobre sua conjuntiva  úmida, levantei um pouco sua córnea e passei por baixo, caminhei com  dificuldade por sua íris acidentada e então dei de cara com o negro  absoluto da pupila.

Um abismo profundo onde havia apenas o vazio e  o desconhecido. Eu olhava para ele e ele devolvia o olhar. Seus  mistérios eram ao mesmo tempo assustadores e convidativos, me deixando  vacilante a beira do precipício. Mas depois de muito hesitar, por  coragem ou imprudência, acabei não resistindo e me joguei nele.

Cai  leve e a medida que caia, via ao meu redor surgirem imagens de sua  mente. Coisas banais, rotina, cozinha, trabalho, trânsito, filmes, entre  outros passatempos e preocupações. As cenas se encadeavam uma a uma e  passavam correndo diante de mim para depois ficarem para trás. A partir  de um dado momento na queda, as sequências começaram a ficar mais  esparsas até desaparecerem. A atmosfera foi se tornando mais fria e escura, como se eu  estivesse adentrando em outra camada do abismo. Olhei para onde vim e vi  a face dela ao contrário, como a parte interna de uma máscara, já  distante no meio da escuridão.

O foco de luz que penetrava por  seus olhos foi enfraquecendo. Instantes depois, eu já não via a máscara e  não sabia se estava caindo ou se estava parado. Tempo e espaço se  perderam e fiquei pensando em como faria para voltar. Foi aí que uma  imagem apareceu, desta vez sem correr por mim. Era diferente das outras.  Não era tão viva, pelo contrário, tinha um aspecto um pouco esfumaçado.  Também não se entrelaçava com nenhuma outra memória, era desconectada  do resto. E, principalmente, toda as suas ações, por mais triviais, eram  carregadas de bastante intensidade e me afetaram profundamente.

Da  névoa, a primeira coisa que notei surgir já me causou estranheza: eu  mesmo. E por trás de mim se descortinou uma ambiente familiar. Embora  claramente diferente, não deixava dúvidas que era a casa de um amigo  meu. Aos poucos, outras pessoas foram surgindo e passei a reconhecer a  ocasião. Era a festa de aniversário daquele amigo semana passada,  quando, apesar da boa companhia, não me senti exatamente bem por algum  motivo. Foi aí que percebi, à minha frente lá do meu lado na névoa, a  presença dela.

Alegre e extrovertida, distribuía sua simpatia a  todos no local, menos a mim. Diferente do que aconteceu semana anterior,  não trocamos carícias e eu-te-amos. Na verdade, sequer estávamos de  mãos dadas. Mesmo assim, não me sentia muito diferente de como me senti  na ocasião. Reparei que meu outro eu até tentou encontrar apoio nas  outras pessoas, mas ele não conseguia interagir com elas, a protagonista  da cena era ela. Ele foi ficando quieto, embotado, e de repetente era  apenas um boneco. Inanimado, duro, ficou estendido no sofá. Quando todos  se levantaram, ela teve de agarra-lo pelo braço e arrasta-lo sala  afora. Largou-o no chão e continuou sua conversa. A pizza ficou pronta  na cozinha e desta vez ela já conseguiu carrega-lo debaixo do braço. Na  volta, o trouxe pendurado na mão mesmo. O boneco estava encolhendo e  também ficando mais frágil. Um leve esbarrão na mesa quando foram sentar  e a perna dele se partiu. Ela mal notou, apenas jogou-o em cima da  cadeira e pôs-se a comer. A comida estava ótima, disseram todos, a noite  foi maravilhosa e como já está tarde. Um a um, se retiraram. A luz se  apagou, a comida esfriou. Ninguém se lembrou do boneco. E eu fique lá,  sozinho.

Num clarão de luz, eu me vi de volta à cafeteria. Ela me  chamava, alertando que meu café ia esfriar. Perguntou se estava tudo bem  e em que eu estava pensando. "coisas", eu disse a ela. Me deu um "eu te  amo", respondi e trocamos carícias. Um mês depois terminamos. Eu  argumentei que a sentia fria e distante comigo. Ela até admitiu que  podia parecer isso, mas insistiu que no fundo, bem no fundo, eu era  muito importante pra ela.

Dose DiáriaWhere stories live. Discover now