Capítulo 1

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— Minha cara Sophie, você vai e ponto final. Não quero mais ouvir suas lamúrias, agora chega! Me dê licença, tenho mais o que fazer — afirmou categórico meu pai, Solomon Tremblay. Quando finaliza uma discussão sei que não adianta tentar fazer mudar sua decisão, mas sou sua filha, teimosa tal e qual.

Meu pai nunca ouve, por mais que tente quebrar essa barreira de gelo que se formou em nossa relação nunca consegui me aproximar. Acredito, não, preciso acreditar que essa distância se abriu quando perdemos minha mãe Moya, ela era uma mulher incrível, conseguia nos unir, mesmo não nos sentindo a vontade um com o outro.

A realidade mesmo é que nunca fomos próximos, nem um pouco. Era minha mãe e eu, meu pai apenas fazia pequenas participações especiais em alguns capítulos da minha vida, creio eu, por ela. Porém preciso deixar bem claro, seu amor por minha mãe era forte, incrível e visível. Mesmo que a guardasse do resto do mundo, gostava de tê-la apenas para si, vivia por ela, para ela e com ela. Não frequentávamos festas e reuniões de família com frequência, se é que chegamos a participar de alguma, mas ele sempre estava ali presente por ela. Quanto a mim, era apenas uma consequência dos dois, me sentia invisível para meu pai. Saí das minhas memórias e encarei a fera mais um pouco. Dizem que a quinta tentativa é a da sorte, certo?

— Pai, pelo menos me acompanhe, Anton e você tem mais em comum do que eu. Sei lá, poderíamos aproveitar umas pequenas férias juntos, desde quando mamãe se f...

— Sophie, por favor! — disse irritado movendo-se em sua cadeira de couro, fazendo o material ranger sob seu peso. — Você terá a possibilidade de conviver com os Bouchard, com quem temos uma relação bastante longa, desde que sua mãe ainda era viva.

— Eu sei, mas quinze dias num chalé de caça é muito tempo para uma convivência amigável, não acha? — comecei a estranhar sua insistência, outro ponto sobre o Sr. Tremblay é nunca parecer ligar para nada, a não ser seu império, esse tinha toda sua atenção.

— Anton tem algo a lhe falar, quero que pelo menos nesse caso tome a decisão correta, por mim e pelos negócios da família. E outra coisa, será bom para você sair e conviver com pessoas ao invés de ficar enfurnada no laboratório com amostras de terra e análises. — Ou seja, será bom ficar longe dele!

Chegamos ao ponto que estava esperando, ele nunca irá perdoar o fato de sua única filha não ter seguido os passos da família: ser administradora da "Paper  Cellulose Tremblay Industry". Esta deve ser sua pequena vingança pessoal, sempre que surgir uma oportunidade de me jogar nos braços de Anton ele vai fazer sem cerimônia e no momento ele está empurrando com as duas mãos. A família de Anton realmente têm sido nossos únicos amigos desde antes do falecimento de minha mãe, são amigos de longa data, mas isso não significa que Anton e eu tenhamos uma relação amigável, pelo contrário, eu realmente o detesto e tenho certeza que é recíproco.

Estudávamos sempre nos mesmos colégios, ele sempre foi um garoto mimado e insuportável. Na escola primária, juntou-se as outras crianças em coro para me importunar, tinham até uma musiquinha infernal em minha homenagem; "Sophie, insosa chorona e muito trouxa". Crescemos e frequentamos a mesma universidade, mas graças a Deus o campus era diferente, não nos colocando em contato. Todavia, sua fama chegava em meus ouvidos, coisas pesadas como o uso e venda de drogas, bebidas e o mais grave abusos sexuais.

Um dos meus poucos e curtos relacionamentos foi durante a universidade. Como nunca frequentei festas, uma noite esse cara conseguiu me convencer a participar de uma na fraternidade de Anton. E adivinha? Com certeza boa coisa não saiu, dei uma pausa entre um copo de refrigerante e outro, possivelmente havia sido batizado, e fui ao banheiro. Assim que voltei ouvi Anton falar com meu pseudo namorado e o resto da sala embriagada que finalmente alguém tinha desbravado minha virgindade, e que o cara merecia um prêmio, o canalha ainda sentiu-se o verdadeiro herói por ouvir essa besteira pela boca de Anton, escroto. Terminei tudo ali mesmo, e só para constar, ainda sou virgem, sei que é clichê e meio anormal nos dias de hoje, às vezes sinto que Anton está certo em relação a mim, sou tão chata e exigente que chega a ser patético. Não sei o que esperei até agora, mas ainda não encontrei. Espero realmente não ser a "frígida Sophie" que ele vive soprando pelos cantos da empresa, pois é, como se não bastasse o fato de ter estudado com ele minha vida toda trabalhamos na mesma empresa, a de meu pai.

— Pai, por favor! O que vou fazer no chalé sem você? Por mais que eu tente não consigo me entender com Anton. E da última vez que estive lá, eu...não guardo boas recordações, você mais do que ninguém deveria me entender. – Ouch, essa doeu até mesmo em mim.

— Sophie, você vai e essa é minha última palavra! — Tirou seus óculos e espremeu o nariz entre seus dedos. — Agora chega, preciso trabalhar e você está me atrapalhando.

Finalizou a discussão ali, sei que mexi em uma ferida dolorida, mas realmente não queria ir. Segui derrotada rumo ao laboratório, no caminho dei de cara com Anton que me encarou com um sorrisinho cínico nos lábios. Como se já soubesse de tudo, cretino! Decididamente não gosto dele, nem um pouco.

Antes de sair de sua sala meu pai ainda me presenteou com essa pérola:

"— E não se esqueça de ser a companhia perfeita para Anton. Os pais dele não esperam menos e eu também não." — Nem ao menos ergueu seu olhar ao dizer estas palavras.

Depois, no laboratório, consegui um pouco de paz. Se minha mãe ainda estivesse aqui de jeito nenhum ela permitiria tamanho absurdo. Tudo aconteceu nesse maldito chalé, não sei porque tenho que voltar para aquele inferno, vez ou outra a família de Anton nos emprestava para passarmos o inverno. Ficamos uma semana lá naquela ocasião, eu tinha 14 anos e minha mãe, que veio do antigo vilarejo próximo das montanhas de Quebec onde ficava esse maldito lugar, amava ali, meu pai aproveitava para caçar. Lembro bem, numa tentativa minha para me aproximar dele pedi que me ensinasse a atirar, ele relutante aceitou sob os olhos observadores de minha mãe, acabou por se surpreender pela minha intimidade com a arma, aliás, eu também. Mas quando propôs que fossse em uma de suas caçadas minha mãe interveio feito uma leoa.

Foi dessa maldita discussão que tudo aconteceu, eles brigaram tanto que resolveram ir embora, mas a briga apenas continuou, trocas de ofensas que nunca havia presenciado entre eles foram ditas. Houve muitos berros, coisas sendo espatifadas e um pai alterado entrando num carro e sumindo. Logo minha mãe fez o mesmo, com uma mala, separou alguns de meus pertences e saímos dali, para onde não sabia. Quando a questionei, simplesmente respondeu aos prantos que assim que chegássemos ao nosso destino tudo seria esclarecido, eu descobriria toda a verdade. Verdade essa que nos foi negada por meu pai em todos os anos que passou desde quando nasci, e realmente descobriríamos a real felicidade.

Mas esse destino nunca chegou, o caminho estava reservado a tragédia, uma caminhonete vermelha apareceu do nada em nossa frente. Só me lembro de vidros voando, ferro contorcendo e barulhos ensurdecedores que até hoje, em dias de chuvas de raios e trovões, provocam arrepios de puro terror. Pesadelos constantes visitam minhas noites, sempre.  Anos de terapia não conseguiram apagar a eterna marca daquele maldito dia. Meu mundo se foi, minha mãe, minha luz...se apagou.

CAMINHOS CRUZADOS (Crossing Lives)  Degustação(Em Breve Novidades!)Onde histórias criam vida. Descubra agora