Capítulo 1

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Quando meu irmão se foi, levou minha última dose de conforto nesse mundo e deixou a garrafa que eu levo aos lábios entre uma e outra sessão da tortura que chamo de lar. Quatro cubos de gelo enrolados no pano que pressiono contra o rosto amenizam a dor, e os três cubos que gelam a vodca dentro da garrafa mágica de Augusto garantem minha sobrevivência. Na verdade, é só uma garrafa de metal que ele comprou para esconder bebida. "Mágica" sempre foi nosso eufemismo. Agora é só meu, desde que Augusto se matou.

Ele já disse uma vez que nosso único escape era a morte, porém eu nunca acreditei em sua coragem para escapar. Mas Augusto me deixou, e eu nem ao menos vi seu corpo. O troglodita o escondeu, se livrou dele. Tudo que eu ouvi naquele dia foi "não tem nenhum corpo, filhinho" gritado repetidamente na voz rouca de cigarro, nas palavras trôpegas de álcool. Depois o troglodita me obrigou a fazer seu jantar. Foi a primeira vez que cozinhei sem meu irmão. Hoje, já me acostumei.

Ainda com o pano de gelo colado à face, eu cambaleio até meu quarto, batendo a porta. A cama geme quando deposito meu peso nela. Sobre a mesa de cabeceira, deixo a garrafa de vodca já vazia. Terei chance de comprar mais amanhã? Mas interrompo meu pensamento quando alguma coisa se movimenta atrás da cortina. Deve ser um morcego. Vou até lá e afasto o pano.

A um metro de distância, uma pessoa me encara através da janela fechada.

É Augusto.

Eu prendo minha boca com as mãos para evitar o grito enquanto meu irmão aponta uma arma para sua própria cabeça.

— Eu te espero, João — ele diz, sem demonstrar emoção na voz nem no rosto. — Vamos morrer pra sempre.

Eu fecho os olhos na esperança de não ser real. Tudo que sei do tiro é o barulho que me ensurdece. Ainda surdo, abro os olhos novamente. Nada de Augusto. Nada de sangue no vidro da janela. Mas o dano do disparo prevalece nos meus tímpanos.



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Oie! Gostou do primeiro capítulo, ou pelo menos da ideia da história? Então deixa seu voto! Agora pode passar pro capítulo 2 e boa leitura ;) Beijos.

O filho vivoOnde histórias criam vida. Descubra agora