Capítulo Único

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A música toca alto e ouço minhas amigas tagarelando com alguns garotos em que elas estão interessadas. Corpos suados esbarram vez ou outra em mim mesmo com meu esforço de ficar longe do alcance das pessoas que estão dançando. A música que toca não é das melhores, é algo que deveria ser eletrônica mas com efeitos toscos e letras mais toscas ainda. O que me incomoda realmente não são nenhuma dessas coisas, o que me incomoda é o fato de não tê-lo visto ainda...

Olho em volta apreensiva, em busca de qualquer coisa que lembre ele: seja um cabelo preto desarrumado ou um rastro de fumaça de cigarro, qualquer coisa... Imaginei que ele estaria aqui, não é costume dele perder alguma festa ainda mais uma festa organizada pela nossa comissão de formatura, o que é sinônimo de muita bebida e a chance de virar a noite na escola sem professores ou qualquer adulto responsável por perto. Essas festas sempre terminam em vandalismo e provocando raiva e indignação na direção da escola mas a comissão sempre arruma um jeito deles perdoarem a "empolgação e vitalidade de seus queridos formandos" e logo outro evento é organizado.

Não que eu ligue pra isso, festas são algo em que eu raramente me envolvo. Geralmente deve haver algo do meu interesse para que eu cogite aparecer em uma e nessa tem alguém que eu gostaria de encontrar. O que me lembra que...

Já está muito cheio aqui, ele deveria ter chegado. Talvez ele já estivesse em algum lugar, quem sabe com outra garota? Bom, não sei porque eu tenho esperanças, um cara como ele não costuma se interessar por garotas como eu de qualquer maneira...

-Acho que vou pegar alguma coisa pra beber... – comentei me virando para minhas amigas mas cada uma delas já estava distraída com um cara, apenas me virei novamente e fui andando em meio aos corpos, lutando para abrir passagem.

Finalmente cheguei do outro lado onde mesas cheias de salgadinhos estavam expostas, o meu interesse era outro entretanto. Haviam vários coolers debaixo das mesas e, sem pensar muito para que eu não tivesse tempo de desistir, peguei uma garrafa qualquer lá de dentro e comecei a virar. Era algo extremamente amargo e que queimou muito enquanto descia, meus olhos lacrimejaram mas me obriguei a continuar entornando o líquido. Minha garganta pareceu travar e segurei a garrafa enquanto lutava para não vomitar o que tinha acabado de beber, pude ver que metade do seu conteúdo tinha sumido e uma leve tontura tomou conta de mim. Foda-se, se fosse pra ficar naquela festa sem ele que fosse bêbada.

Fiquei um tempo encostada na parede, bebia alguns goles da garrafa enquanto observava as pessoas dançando e com o tempo percebi as coisas começando a ficar embaçadas e as cores parecendo dançar na minha frente. Era hora de parar, eu sabia disso.

-Você nunca me pareceu o tipo de pessoa que bebia – virei-me assustada em direção à voz deixando a garrafa cair. Dei de cara com aqueles olhos escuros sérios, os cabelos pretos bagunçados e o cigarro levemente pendurado entre seus dedos.

Ele estava ali. Bem na minha frente. Sem nenhuma outra garota. Falando comigo.

-Hm – tentei pensar em algo interessante para falar mas o álcool deixou meu raciocínio lento –Temos que estar abertos à novas experiências, certo?

Ele sorriu de um jeito que fez calafrios subirem pela minha espinha. Deu um trago no cigarro, jogou-o no chão e pisou com seu all-star desgastado nele.

-Quer ir para algum lugar? Aqui está um saco e fiquei muito tempo à toa esperando por você... – ele comentou casualmente como se essa informação não fosse nada demais, como se o fato dele estar esperando por mim não devesse me atingir tanto.

Balancei a cabeça concordando, sua mão segurou a minha e me levou rapidamente em direção ao bloco c. Passamos pelos corredores de mãos dadas, eu encarava suas costas e me esforçava para não cair. Estava escuro demais e o álcool parecia ficar mais forte no meu sangue a cada segundo que passava.

Devo ter me distraído por alguns minutos pois percebi que subíamos longos lances de escadas até darmos de cara com uma porta de ferro. Ele a empurrou como se pudesse abrí-la com sua simples vontade e o ar gelado da noite soprou no meu rosto. Estávamos no telhado, sozinhos, apenas a música da festa ainda nos fazia companhia.

Senti sua mão soltar a minha, a tentação de segurá-la de novo era muito forte mas lutei contra isso. Ele caminhou até a borda do prédio e o segui, olhamos lá para baixo juntos. Os movimentos das pessoas se misturando, as cores piscando, o vento bagunçando meus cabelos e os dele enquanto nos transformava em um só.

-Sempre senti como se nós dois estivéssemos acima de todas essas pessoas, agora finalmente é verdade, não é? – ele riu, uma risada tranquila e casual, uma risada que nunca poderia sair dos meus lábios. Seus olhos escuros se moviam rápido de um lado para o outro, examinando a cena embaixo de nós.

-Por quê? – era uma pergunta idiota mas não consegui me segurar, talvez fosse culpa daquela maldita bebida que eu tinha tomado –Por que eu sou especial? As garotas dessa escola são loucas por você mas você insiste em falar comigo nos corredores, em me olhar quando acha que eu não percebo, em me chamar pra cá... O que eu tenho?

Seus olhos escuros se ergueram e encontraram os meus, ele parecia me sugar pra dentro dele e eu não teria oferecido resistência. Tenho observado ele por tempo demais.

-Essas pessoas são tão... Falsas. Mas você é humana, isso que é interessante – ele respondeu como se fosse algo que estivesse na cabeça dele há muito tempo, confesso que essa ideia me assustou um pouco –Ser humano, ser normal, ser real são coisas que a gente não acha mais. E nós dois somos diferentes, você não sente?

O vento soprou com mais força e outro calafrio subiu a minha espinha, não consegui evitar ficar sem jeito.

-Não sente que poderíamos voar juntos? Que as pessoas correriam de nós assustadas mas isso seria bom porque temos um ao outro? Eu sei que você se sente como uma aberração, esquisita, eu também me sinto mas juntos podemos nos entender.

-Você sabe que sim – confessei, ele virou seu tronco para mim e aprofundou seu olhar. Seus olhos eram ferozes, cheios de raiva –Eu não sei o que você tem mas é o único garoto que conseguiu me alcançar...

-E você é a única que me alcançou também – um meio sorriso se formou nos seus lábios, não consegui conter o meu e logo estávamos sorrindo juntos –Sempre senti como se eu fosse inalcançável, muito difícil de amar, muito complicado de lidar, quebrado demais pra ser consertado... Não sinto nada disso com você. Só toma cuidado pra não se cortar nas minhas beiradas, bebê...

Seus olhos pareceram escurecer quando disse isso, estremeci um pouco.

-Acho melhor voltarmos, não sei se deveríamos estar aqui – falei baixinho com medo de chateá-lo, não queria realmente descer mas havia algo de muito perturbador em estar sozinha com ele em um lugar tão alto. Meus pensamentos pareciam fora de controle, tudo culpa da merda de bebida...

Ele assentiu e voltamos pelo mesmo caminho que viemos.

Estávamos caminhando em completo silêncio até ele me puxar pelo braço em direção à uma porta. Antes que eu pudesse perguntar o que estava acontecendo, senti a boca dele na minha. Ele me beijou com firmeza, sem deixar espaço para que eu recusasse e isso fez meus sentimentos se dividirem. Eu queria tanto mas ao mesmo tempo ele era tão raivoso que me causava arrepios.

Quando a boca dele se afastou alguns centímetros, ele disse baixinho:

-Você pode ir embora se quiser, não estou te impedindo...

-Eu não quero – respondi e colei minha boca na dele.

A música da festa ainda tocava, o grito das pessoas podia ser ouvido mas naquele momento com os braços dele me segurando e percorrendo as curvas do meu corpo, sua língua entrelaçada na minha, seu hálito de cigarro e menta e seus cabelos macios entre meus dedos, senti como se estivéssemos voando juntos.

Como se fossemos um só.

Como se nós dois estivéssemos acima de todos.

Cambaleávamos pelo céu.

E as pessoas fugiam de nós.

Jovem DeusOnde histórias criam vida. Descubra agora