Degustação

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"As desventuras são suportáveis pois vêm de fora, são meros acidentes. É no sofrimento causado pelas nossas próprias faltas que se sente a ferroada da vida."

Oscar Wilde.

As gotículas de chuva banhavam o asfalto. Uma a uma, elas umedeciam o chão negro. O que começou como um pingo se tornara uma poça, a qual se alastrou e tomou todo o piso. O calor do pavimento se retirava em forma de fumaça. Um choque de temperatura. Frio no quente. Quente no frio. Êxtase da natureza.

A gélida gota que escorria em meu rosto não diminuía o pulsar de meu coração, aumentava-o. A adrenalina sempre foi meu vício. O burburinho ao redor atiçava ainda mais minha sede pela vitória. As mãos de Bridget em meus ombros promoviam ainda mais frenesi nas veias. Os lábios se esticaram num sorriso confiante, ao encarar as quatro belíssimas mulheres em volta de mim. Meus braços envolveram a cintura fina da namorada. Os dedos embrenharam nos cachos volumosos da morena, a qual prendia os olhos negros em meus lábios, e aproximaram-na de mim.

— Preparada para mais uma vitória? — disparei, com meu nariz rente aos lábios carnudos. Eles se comprimiram, antes de libertarem a risada ruidosa.

— Estou sempre pronta para você, amor. — retrucou, próxima a mim. — Se nós ganharmos de primeira, o prêmio, além do dinheiro, será um descanso pelo resto da noite. Eu me encarregarei de tirar cada pedacinho de estresse deste seu corpo sarado. Quantas vezes quiser.

O semblante malicioso ganhou Bridget, deixando claro que o prazer intenso seria minha recompensa. Sem querer me desconcentrar completamente, afastei-me brevemente da tentação em forma de boca a centímetros de mim. O toque sutil da respiração fervorosa da morena foi suficiente para me roubar um arrepio.

Abruptamente, um vento nos acometeu. Pequenas partículas d'água respingaram em nós, quando a motocicleta vermelha rodopiou à nossa frente.

— Shawn, está atrasado! Pensei até que você tivesse desistido. — provocou o rapaz com cabelos loiros e tatuagens por todas as partes do corpo. — Quer apostar a Bridget desta vez?

— Sem piadinhas, Stewart. Não apostamos mulheres, principalmente a minha namorada.

Bufou em explícito deboche.

— Está com medo de perdê-la. — acelerou sem sair do lugar, apenas liberando fumaça do cano de descarga e um barulho estridente.

As garotas, as quais me acompanhavam, gargalharam de modo provocativo. Movido pelo sarcasmo, fiz o mesmo.

Disputei siamesas por dois anos e venci todas as corridas. Em Seattle, pelo menos, eu era imbatível. Stewart sabia disso, costumávamos ser parceiros. Até o dia em que cruzei meus olhos com os de Bridget, e a morena ocupou o lugar outrora dele na garupa.

— Nunca perco. — não hesitei em me gabar.

— Nunca diga nunca, Morrison.

A sede pela vitória cresceu. Jamais imaginei correr contra Stewart de maneira séria. Sempre fomos os dois contra o mundo. Mas, nesse dia, não. Os gritos da motocicleta contra o pavimento faziam o meu sangue ferver nas artérias. Como se os céus se irritassem comigo, a chuva apertou. As gotas frias insistiam inquietas.

Avistei a multidão de pessoas aglomeradas na rua deserta onde costumávamos correr.

Acenei para as meninas que me adoravam e aos rapazes que me odiavam. Entendia a situação deles, perder era difícil. Com toda minha sinceridade, ninguém se habituava à derrota. Ela destruía gradativamente cada parte das almas, deixando ali cicatrizes de dor. Quanto mais perdas, mais marcas incuráveis e fragilidades. Quem me odiava estava vulnerável, enfraquecido. Ao menos, era isso que eu acreditava. Detestavam-me por medo. E me agarrava a isso para derrotá-los.

Segurei no guidom da moto parada ao lado de John, enquanto Martha trazia o cinturão. As curvas de Bridget encostaram nas minhas costas. Nossos corpos foram presos. Estávamos colados. Sentamo-nos na garupa. Meus pés tocaram os pedais. A namorada segurou nas alças ao redor do banco. Liguei o motor. Dei uma breve arrancada, parando em frente à linha na qual delimitava a pista.
Inclinei ligeiramente o rosto para o lado, a fim de enxergar Stewart e John na moto ao lado. Um sorriso torto estampou meu rosto. Forcei um pouco o motor, provocando-os com o ronco.

— Despeça-se da coroa, Shawn. — a segurança em suas palavras me incomodava. — Hoje seu reinado chegará ao fim.

Minha resposta foi silenciosa. Eu sabia que Stew não teria chance, nunca teve. Martha parou diante das motos alinhadas. Alguns corredores que desconhecia pararam ao meu lado. As roupas começaram a colar nos corpos, conforme a chuva apertava. A bandeira úmida se elevou e desceu, marcando o início do racha.

Virei o acelerador com força e voei. O vento empurrava a chuva rapidamente por todo meu rosto. A visão ficou comprometida, porém não pretendia parar. Pelo contrário, a dificuldade me fazia ganhar mais e mais velocidade. Gritei em comemoração, ao perder os adversários de vista. Empinei a motocicleta, no momento em que aguardava a dupla que tanto me provocou. Retornei ambas as rodas para o asfalto, assim que os percebi no meu campo de visão.

Antes que eles pudessem me ultrapassar, acelerei um pouco mais. Senti algo colidir com a moto. Olhei para o lado e consegui ver John chutar minha motocicleta. O pneu derrapou rapidamente sobre o asfalto molhado. O cinto em minha cintura afrouxou de forma lenta. Consegui me manter de pé. A fúria invadiu meu corpo. Acelerei desesperadamente. As gotas de chuva encharcavam todo meu corpo, até sentir a falta do de Bridget atrás de mim. Olhei para trás e consegui enxergá-la caída no pavimento. Contornei e aproximei-me.

— Bridget! — gritei. — Você está bem?

— Estou. Não se preocupe. Ganhe, Shawn.

Estiquei um pé no chão e dei a volta ali mesmo. Disparei contra a escuridão. Nunca senti meu corpo tão preenchido de ódio. Eles derrubaram a minha namorada da moto. Embora a morena estivesse bem, meus ex-amigos passaram de todos os limites. Ganhar não era mais uma questão de superficial, naquele instante, tornou-se de honra. O motor gritava pela rua escura. Se não fosse pela carga d'água, acredito que todo o piso estaria marcado.

Uma ultrapassagem nunca foi tão saborosa. Vê-los ficarem para trás de mim me promoveu um êxtase inexplicável. Com a mão direita, mantive-me a postos. No entanto, a mão esquerda se ocupou em erguer o dedo do meio para os dois na motocicleta ao lado. Gargalhei, ostentando toda a felicidade em demonstrar a chance nula contra mim. Voltei a mão para a direção.

Meu pneu deslizou. A moto cambaleou. Quando tentei jogá-la para o lado, na tentativa de firmá-la no solo, outro chute a fez titubear. Olhei para trás. Stew acenava em despedida. A feição debochada não o abandonava. Um pontapé ágil e potente me desconsertou.

Escorreguei até o meio-fio, onde a moto se elevou. Minhas pernas se afastaram do veículo, bem como meu corpo foi cuspido para o gramado molhado. Meu tronco chocou contra a raiz de uma árvore. Caí com os braços abertos. Arduamente, tentei observar meu estado, mas o lanhado associado ao sangue dificultavam qualquer análise. Elevei o olhar numa espécie de câmera lenta.

A motocicleta girava no ar, aterrissando em minha direção. O único reflexo o qual tive foi virar o rosto. O peso da moto chocou em meu braço direito. Tentei emitir algum som, contudo o mínimo esforço aparentava um sacrifício. Alguém gritou meu nome. Não sei quem. A dor me consumiu.

Avistei o murmurinho ao longe se dispersando, cada um para um lado diferente. Em questão de segundos, perdi-o de vista. O único ruído que conseguia distinguir era o da chuva. Ninguém viria me ajudar. Permaneci imóvel até que, sem mais forças, fechei meus olhos.

Amputado [Degustação]Onde histórias criam vida. Descubra agora