"Amor verdadeiro é um sentimento tão nobre que não importa sua dor, você só quer ver o outro feliz. Isso te faz feliz e cura suas feridas"
No percurso até Petrópolis, ficamos em silêncio. Cada um parecia envolto nos próprios pensamentos.
Eu estava com medo de ter feito a escolha errada. Medo de que o encontro com o seu passado pudesse piorar sua dor.
- como eles se chamam?- perguntei já cansada do silêncio.
- Amélia e Felipe.
Não pude deixar de notar como ele apertou as mãos sobre o volante.
- como era seu relacionamento com eles, antes de tudo acontecer.
- normal, eu acho. Minha mãe sempre foi protetora, me mimava o tempo todo e meu pai mais reservado, contido, mas sempre se orgulhava de mim.
- então você tinha amor- falei com pesar.
Eu nunca tive e invejava as pessoas que tinham isso.
- você não teve? Nunca quis me falar realmente o motivo de ter saído de casa.
- minha mãe me amava, sempre amou, mais amava mais o meu pai. E meu pai só amava a bebida.
Encostei a cabeça no vidro e olhei para a estrada que passava rapidamente por meu olhos, como vinha acontecendo com a minha vida.
- então você desistiu também? Não aguentou lutar contra o álcool?
Senti seus olhos em mim e o encarei.
- eu não desisti. Eu não tive opção. Ou saia de casa ou ele acabaria matando a mim e a minha mãe.
- ele batia em você? Aquelas vezes.....foi ele....:
O carro brecou bruscamente, me fazendo quase voar do banco. Ele encostou no acostamento e agarrou as minhas mãos.
- responde a minha pergunta, Nicolle. Ele batia em você? Me responda- ele gritou. Não era um pedido.
Kaua estava descontrolado e seus olhos brilhavam de fúria.
Olhei para ele, desesperada para continuar forte.
- isso é passado. Não importa mais.
- como não importa? Eu vou voltar lá e vou matar aquele infeliz por ter machucado você.
- não, você não vai.
Ele estreitou olhar.
- ele tem que pagar pelo que faz.
- como? Acabando com a vida dele e o enterrado em uma cadeira? Pra que? Pra quando ele sair, daqui a um ano, no maximo ele voltar e acabar com a vida da minha mãe?
Sacudi a cabeça- não. Muito obrigada por sua ajuda. Eu não acho que você está em condições acabar com a vida de mais ninguém.
Quando as palavras escaparam da minha boca, foi como um soco no meu estômago. Ele estava pálido.
- me desculpe....eu não queria ter dito isso. Não quero falar do meu pai. Por favor.
Ele assentiu e ligou o carro novamente, sem me dizer uma palavra.
O silêncio foi como um castigo. Não saber como ele se sentia, não poder abraçá-lo e pedir desculpas.
- Kaua, por favor, me perdoe. Aquele homem que se diz meu pai, é um monstro. Falar dele traz a pior parte de mim.
- o problema é que sua pior parte é muito melhor que do que todo meu ser. Você tem razão, sobre tudo que diz.
- não. Eu não tenho razão. Você tem quando diz que ele precisa pagar por todas as surras, toda dor e toda a humilhação que já me fez passar. Mas isso seria o fim da minha mãe. Respeite isso, por mim. Mesmo não valendo nada, ele é tudo que ela tem.
- ela tem você, Nicolle. E não conseguiu fazer a escolha certa.
Só que eu não podia gritar para ele e dizer que eu estava morrendo e que era melhor um bêbado a um fantasma.
As coisas não estavam indo na direção que eu sonhava. O dia perfeito só tinha servido para que nos desentendêssemos e eu estava odiando isso.
Coloquei minha mão em cima da sua perna e fiz carinho, buscando me acalmar e acalma-lo.
- você me ensinou tantas coisas e não conseguiu compreender que as vezes você acha que tem alguma coisa e no fundo, não tem nada. Você acha que seu pai é tudo que sua mãe tem. Então, ela não tem nada.
- eu sei....-Eu sabia. Só não tinha o que fazer a respeito- é que talvez você não compreenda que para algumas pessoas que não tem nada, um prato de comida no final do dia, já é muito.
Minha mãe não tinha estudo, nunca trabalhou, já era uma idosa. O que ela faria se meu pai a abandonasse? Ela passaria fome.
- comida a troco de alguns hematomas não me parece uma boa opção. Podemos ajudá-la. Eu quero ajudar sua mãe.
- depois falamos disso, pode ser?- pedi enquanto ele estacionava o carro em frente a uma mansão, que me dava uma pequena noção do quanto a vida daquelas pessoas eram diferente da minha.
- sim, mas não vou esquecer.
Antes de descermos do carro, ele me abraçou.
- obrigada por estar aqui. Eu nunca conseguiria sem você.
Seus lábios tocaram os meus levemente e ficamos parados, respirando no mesmo compasso.
- obrigada, por querer cuidar do que é importante pra mim. Você não tem ideia de como me sinto sendo cuidada por você.
- não vai ser fácil isso...
- eu sei- coloquei os lábios sobres os seus novamente- mas eu estou do seu lado. Mesmo que tudo der errado, vou entrar nesse carro para ir embora com você e te amar ainda mais. Estar aqui hoje, por mim, mostra o grande que você é.
Ele assentiu e não disse nada. Estava emocionado.
Quando descemos, o velho Kauã estava de volta. Sua postura ficou rígida e as rugas voltaram entre as sobrancelhas.
Apertei sua mão, o apoiando e elas começaram a suar quando ele apertou o interfone.
- o que devo dizer? Oi, odeio vocês, só vim para ver se estão vivos?
- deixe acontecer. Talvez nada precise ser dito.
A porta se abriu e um homem, que parecia ser um mordomo, olhava pasmo para nós.
- oi, Ruandres. Minha mãe está em casa?
- sim....ela....eu vou chamá-la.
Pareceu uma eternidade, até que uma mulher elegante, parou na porta, chocada demais para ter qualquer reação.
Ele balançou a cabeça, com um sorriso amargo nos lábios.
- oi, mãe.
Quando o choque inicial passou, lágrimas comeram a escorrer dos seus olhos e ela correu para um abraço, soluçando em seu peito.
Kaua, não retribuiu o abraço, mas deixou ser abraçado por um longo momento.
- quem está aí Amélia?- escutei alguém perguntar ao fundo.
Pelo modo como ele abriu os olhos assustado, a voz era do seu pai.
Rapidamente, ele colocou os braços na sua mãe, a afastando.
- kauã? Você....-o pai falou, também surpreso.
No entanto, não parecia emocionado como a mulher. Parecia estar com raiva e descobri de quem Kaua tinha herdado o costume de franzir tanto a testa.
- oi, deixe me apresentar- falei tentando melhorar o clima- sou Nicolle, amiga do Kaua.
Eu não poderia me apresentar como sua namorada, depois que o filho parou de falar com eles por anos. Ai, como era estranho a situação toda. O que eles diriam se soubessem que eu também morreria em breve? Me mandariam para o inferno com toda a certeza. Mais uma para destruir seu filho.
- muito prazer, Nicolle. Talvez você possa nos contar sobre nosso filho, afinal qualquer estranho deve saber muito mAis do que os próprios pais- o homem falou irritado.
- talvez eu estivesse sentado na sua sala agora, de mãos dadas com a minha mulher e vendo meu filho correr brincando, se você não fosse tão egoísta- Kaua disparou.
Oh, ou...!!! Nada bom!
- entre, filho. Estava esperando por isso há anos. Você é bem vindo nessa casa. Quem descorda, pode se retirar- Amélia reagiu, repreendendo o marido com um olhar.
- não sei se é uma boa ideia. Essa casa está repleta de lembranças tristes e cruéis. Não sei o que estou fazendo aqui.
- posso te dizer, o que veio fazer aqui. Até que a lembrança da sua mulher era viva, você nos manteve como culpados de um crime que foi você quem cometeu. Nós somos a lembrança de que você era adulto o suficiente para ter suas próprias escolhas. Então muito mais fácil ignorar seus pais, sem se preocupar um único dia se pelo menos sua mãe estava bem- Felipe o olhou com ironia e depois me encarou- agora me parece que superou e resolveu fazer o que? Veio buscar sua herança?
- maldição- murmurou, Kauã- eu não ligo a mínima para a droga do seu dinheiro. Eu não ligo a mínima para aquilo tudo que você acha tão importante, pai. Eu achei que deveria ao menos....
- realmente você não liga a mínima para aquilo que considero importante, ou saberia que minha mulher e meu filho era tudo que me importava. Você se foi e levou o coração da sua mãe junto. E nunca se importou.
Por fim, depois de despejar toda a sua raiva, lágrimas brotaram nos olhos daquele homem e ele se foi para dentro.
Kaua, que até então não tinha soltado a minha mão, se virou e voltou para o carro xingando.
Dei um sorriso triste para a Amélia, que chorava de cabeça baixa e hesitante fui atras dele.
- Kaua, espera- gritei, quando percebi que ele tinha a intenção de me deixar para traz.
- não. Espera você- ele berrou- que acha a dona de todas as verdades. Você entra na minha vida, ocupa um lugar que nunca deveria ser de mais ninguém e acha que sabe o que é melhor para mim.
Um murro no capô do carro me fez dar um pulo.
- você não sabe nada do que é perder tudo. Você não sabe nada sobre não ter mais ilusões e sonhos. Você vem com sua conversinha de mulher que sempre sorri e passa por cima de tudo e acha que com sua psicologia barata vai mudar o mundo.
- eu não....-Eu não sobreviveria a tantas palavras cruéis.
- eu sinto te informar, Nicolle, mas se isso resolvesse, eu teria comprado um livro de auto ajuda e não precisaria lidar com as suas lágrimas.
Sim, elas já escorriam pelo meu rosto.
- tudo que eu queria era te ver feliz, Kaua. Me desculpe por isso.
Senti meu auto controle me abandonar e comecei a tremer da cabeça aos pés.
- EU NÃO QUERO SER FELIZ! Eu não mereço ser feliz- ele completou, antes de entrar no carro e me deixar pra traz.
Ele me odiava. Era isso que eu desejava desde o começo daquele plano idiota. Mas odiava a vida e tudo que pudesse trazer felicidade também.
A minha vida não era um livro, onde tudo ficaria bem. Ele tinha razão, minha psicologia barata não servia de nada. Meus sorrisos na tinham mais importância e minha vida nenhum sentido.
Me sentei em uma escada em frente da casa e fiquei olhando para o sol e pensando em quantos dias o veria e em como Kaua sofreria nessa vida.
Mesmo com tudo que ele tinha feito, eu só conseguia pensar em como o queria feliz.