Vôo

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Um novo dia começa. O céu azul, tão limpo e belo, me chama como uma doce e carinhosa amante. Abro minhas asas e me estico. Asas grandes e coloridas. Os tons de marrom, branco e preto das minhas penas contrastam com meu bico lustroso. Bato-as e ganho o mundo.

Alcanço uma altitude majestosa. Minha visão chega até o mais belo detalhe do enorme parque ecológico. Meus pequenos parentes cantam com enorme satisfação em galhos de macieiras. Suas cores pintam uma linda aquarela em um quadro somente meu. Posso sentir a alegria da lebre saltando com sua grande família pelos campos límpidos. Da lagoa cristalina, salta um enorme peixe palhaço, enquanto o astuto pelicano tenta capturar seu almoço. A natureza segue seu curso perfeito.

Logo adiante, a floresta de pedra dos homens. Sua fumaça embaça seu belo quadro vizinho. Mas ainda há beleza. Uma fêmea passeia com sua cria pelas enormes ruas movimentadas. Um artista tão colorido quanto um sabiá movimenta graciosamente algumas bolas vermelhas na frente de máquinas velozes. Um casal começa seu ritual de acasalamento em cima de uma reluzente estrutura acima do rio poluído. Um contraste gritante e difícil de decifrar. Artistas irônicos, esses humanos.

Bato minhas asas e ganho velocidade. Saio do perímetro urbano e começo a planar longe dali. Deveria caçar, mas não é este meu objetivo agora. Desejo visitar novas telas. Rever amigos antigos. Descobrir novas amantes.

Lembro-me da minha última parceira. Que belas plumas ela tinha. Podia não voar tão alto quanto eu, mas era mais ágil. Pensamos em formar um ninho. O topo de uma pequena e desconhecida montanha era o nosso objetivo. Juntamos um bom e resistente material. Logo vieram os ovos. Uma boa ninhada. Somente um ovo não chocou. Todos os filhotes nasceram fortes e belos. Caçávamos todas as manhãs. Aprenderam a voar logo, pássaros prodígios. Quando ganharam os céus, partiram para sua independência. Esta é a maior de todas as belezas das aves. Não temos limites. Nossa vida é o céu. Nossa visão, o infinito.

Decido visitar aquele ninho novamente. Será que aquela fêmea ainda está lá? Improvável. Quando um pássaro decide partir, ele abraça com sua asas um mundo inteiramente novo. Mas por que será que esse desejo voltou? Um sentimento nostálgico invade meu coração. Minhas penas tremem de ansiedade. O que o destino me reserva voltando no tempo? Percebo que eu anseio, acima de tudo, revê-la.

Ainda me lembro o caminho. Voo velozmente acima de rios e campos. Acompanho a debandada de veados saltando velozmente, enquanto uma alcatéia se aproxima sorrateiramente. Vejo o nascimento de um novo bezerro, um recém-nascido digno de nota. Sinto a leve brisa massageando minha penas. Meus olhos acompanham nuvens se formando e se dissolvendo. Uma beleza natural e eterna.

Encontro a pequena montanha. Um monte de terra de trinta pés de altura no meio de um florido campo, com algumas árvores circulando. Um paraíso desejado pelos primeiros homens, mas jamais alcançado. Circulo minha antiga casa. Está intacta. Sofreu com o tempo, mas ainda está lá. Alcanço-a. Escuto um forte estalo. Caio.

O chão aproxima-se rápido demais. Minhas asas não se mexem mais. Uma forte e indescritível dor atravessa meu corpo. Alguma coisa me atingiu. Algo rápido como a luz e invisível como a gravidade. Uma agonia cresce em meu peito. Atinjo o solo com um baque surdo. Meu coração bate fraco. Minha visão está turva. Vejo dois humanos se aproximarem com compridos objetos estranhos e cilíndricos de metal e madeira nas mãos. Ouço eles falarem, mas já não entendo muito. Algo como "ninho atrai pássaros" e "valeu a pena esperar". Nunca me importei com a língua dos humanos, afinal. Não sei o que isso significa.

Já não importa mais. Os anos passam rápido. Minha visão embaça e escurece. Escuto os fortes passos chegarem perto. Tento me lembrar da bela ave que amei, mas minha memória não me acompanha mais. Já não sinto minhas fortes garras. Meu bico tenta abrir, mas em vão. Minhas penas perdem o brilho.

E, no momento mais improvável da minha livre vida, sinto o frio.

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