O som dos cascos na estrada rompia o silêncio de forma monótona. Uma melodia constante e hipnotizante, que se completava com o acorde ocasional emitido pelo vento e pelos sons de alguma outra criatura do deserto que, sabe deus por que motivo, insistia em viver naquela região. Ali, cercados por areia e uma vegetação composta basicamente por árvores que lembravam mãos retorcidas voltadas ao céu implorando por chuva, os dois homens cavalgavam em direção ao sol poente.
Não faltava muito agora, os dois sabiam bem disso. Ao longe, uma linha fina e cinza rasgava o firmamento alaranjado como uma cicatriz.
- Fumaça. - Disse o homem no cavalo malhado.
O homem do cavalo negro acenou com um gesto bem discreto, praticamente uma olhadela e, quase que simultaneamente, os dois esporearam os cavalos. Nuvens de poeira foram deixadas ao vento conforme a aridez ia sendo deixada para trás, milha após milha, até dar lugar à uma pradaria bucólica, com nada além de uma pequena construção de madeira, com uma chaminé que vomitava uma fumaça negra e mal cheirosa.
- Chegamos. - O homem no cavalo malhado disse ao avistar a construção solitária.
- É. - Respondeu o homem no cavalo negro. - "Pousada Oásis do Sertão". - Ele acrescentou contorcendo o rosto em uma carranca exagerada.
O homem no cavalo malhado cuspiu no chão.
- Eu daria mais credito a esse lugar se o nome fosse "Pousada Aquário de Mijo". - Sorriu. - Pelo menos ele estaria sendo mais honesto, né?
O homem no cavalo negro suspirou. Olhou pesadamente para as janelas desalinhadas, sorvendo os sons agitados da música e das conversas embriagadas que já alcançavam seus ouvidos. Sorriu para si mesmo quando percebeu que sua mão segurava firme o cabo da Colt 45 que repousava em seu coldre. Sentiu o conforto familiar de tê-la junto ao corpo, juntamente com uma apreensão ao lembrar que, dessa vez, só tinha uma chance. Não poderia errar. Não com ela.
- Vamos. - O homem no cavalo malhado se adiantou.
Os dois apearam de seus cavalos e os amarraram cuidadosamente no palanque ao lado da entrada. A música, os gritos e as gargalhadas atingiam seus ouvidos como marteladas impiedosas. Havia festa e havia bebedeira, mas, no momento em que os dois entraram pela porta, só houve silêncio. Toda a atenção do saloon foi imediatamente voltada para os dois. O homem do cavalo negro sentiu os músculos das mãos se retesando, seus olhos percorrendo o lugar em busca daqueles com maior probabilidade de sacar uma arma. Procurou, instintivamente, os melhores abrigos, os melhores alvos, a melhor rota de fuga, a melhor...
- Vou aproveitar que tenho a atenção de todos. - Anunciou o homem do cavalo malhado, caminhando para o centro do saloon com passos firmes. - Meu colega e eu somos agentes da Pinkerton, e estamos atrás de alguém chamado David Kessler, ele é procurado pelo assassinato de suas sete irmãs e é muito perigoso. Qualquer um que tiver informações que nos levem à sua captura, será recompensado.
Imediatamente, os olhos do saloon se voltaram para a pequena mesa isolada em um canto, perto da janela. Um homem de aparência cansada, com cabelos desgrenhados e olhos fundos encolhia-se pesadamente por trás de uma garrafa pela metade. Ao avistá-lo, o homem do cavalo malhado caminhou confiante em sua direção, seguido de perto pelo homem do cavalo negro, que já empunhava firmemente seu rifle.
- Sr. Kessler! - Anunciou o homem do cavalo malhado. - A gente tá atrás de você faz tempo...
- Ah, merda! - Berrou David Kessler. - Um homem não pode só beber em paz?!
- Só que você não é um homem, não é, Sr. Kessler? - Disse o homem do cavalo malhado, inclinando-se sobre a mesa. - Pelo menos foi o que o pessoal lá daquele fim de mundo de onde você veio me falou. Você precisava ver a cara de medo do padre ao falar de você. - Voltou-se para o homem do cavalo negro. - O que foi que ele disse mesmo? "Expulso do reino dos céu--
O homem do cavalo malhado sentiu as mãos em seu pescoço e a imediata sensação da falta de ar. Os dedos fortes de David Kessler em volta de seu pescoço. Suas mãos tatearam a lateral do corpo em busca de sua arma, mas não conseguiu alcançá-la ao ser jogado violentamente pela janela. O som dos vidros se quebrando foi imediatamente seguido pelo familiar som do disparo do rifle Winchester 73. Caiu de maneira desajeitada, cortando-se com o vidro da janela, e os estilhaços da madeira. Levantou, cambaleando aos poucos numa tentativa de se recuperar do susto e do impacto. A luz da lua cheia fazia da noite quase tão clara quanto o dia, e todo mundo teria visto seu momento de vexame. Finalmente olhou para dentro do saloon. O homem do cavalo negro olhava em sua direção com as sobrancelhas arqueadas, seu rifle ainda fumegava e o corpo de David Kessler tremia em espasmos no chão, enquanto uma crescente poça de sangue brotava ao seu redor.
- Filho da puta! - Gritou o homem do cavalo malhado. Depois, arrumou o cabelo, sacudiu a poeira das roupas e buscou recobrar sua postura de homem da lei. - Morto ele só vale 5 mil pratas.
- Você não devia ter se distraído. - Replicou o homem do cavalo negro, se aproximando e esticando o braço para ajudar o colega a voltar para o saloon.
- É, eu sei, só que eu achei que--
Um grito interrompeu, vindo de dentro do saloon.
David Kessler estava de pé. Não. Não era David Kessler. Era um amontoado retorcido de pelos e carne se rompendo. Uma paródia de mal gosto de ser humano que avançou na direção dos dois com olhos arregalados e dentes que rompiam os limites da boca. Garras longas como facas alcançaram o peito do homem do cavalo negro que foi atirado para trás, tombando, para fora do saloon e derrubando o homem do cavalo malhado que segurava sua mão.
A criatura que um dia foi David Kessler saltou pela janela, caindo próximo a dupla que observava de olhos arregalados e boca aberta. O homem do cavalo negro segurava o peito ensanguentado com uma mão, e com a outra mão, trêmula, tentava alcançar a Colt 45 em seu coldre. A criatura avançou contra ele, mas o som do disparo seguido pela dor a fez encolher e urrar.
O homem do cavalo malhado segurava o rifle e já fazia mira para um segundo disparo. Ele puxou o gatilho e viu o sangue da criatura espirrar, mas ela, por outro lado, mal pareceu sentir o projétil. Com um salto preciso ela já havia reduzido toda a distância que os separava e o homem do cavalo malhado viu as garras reluzirem a luz da lua enquanto avançavam em sua direção. Disparou mais uma vez, mas novamente a criatura não pareceu se importar.
E, então, o homem do cavalo malhado ouviu o som de um disparo. Diferente de qualquer um que já tinha ouvido antes. Ele poderia jurar que viu um reluzir branco quando a bala irrompeu, abrindo um buraco do tamanho de uma laranja no peito da criatura, que deu mais dois passos trôpegos e caiu. Tremendo e sentindo o corpo doer, o homem do cavalo malhado arregalou os olhos e viu que o homem do cavalo negro ainda apontava com a Colt 45 na direção da criatura.
Finalmente, o homem do cavalo negro sentiu os braços vacilarem, e a arma em sua mão passou a pesar uma tonelada, e foi ficando mais pesada até que se tornou insuportável. Ele deixou ela cair e caiu de costas junto com ela. Sua visão ficou turva mas, ainda assim, ele pode identificar o homem do cavalo malhado mancando em sua direção.
- Funcionou! - o homem do cavalo malhado falou em meio a soluços. - Nem acredito que a bala do maldito padre funcionou!
- É! - Tossiu o homem do cavalo negro. - Filho da puta.
O homem do cavalo malhado soltou uma gargalhada enquanto sentava pesadamente ao lado do companheiro caído. Ele observou as feridas do homem do cavalo negro.
- Quem diria que a gente sentiria saudade do trabalho de escritório?
O homem do cavalo negro observou a lua. Seus olhos fixos no grande círculo branco. Ele prestou atenção em cada detalhe que não tinha visto em toda uma vida. Sentiu seu brilho quente e reconfortante, como um abraço materno.
- É. - Ele respondeu fechando os olhos. - Quem diria...
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A Caçada à David Kessler
HorrorA busca por um sangrento assassino leva dois oficiais da Pinkerton para uma paisagem isolada no meio do nada. Nota: Esse conto foi escrito como parte de um desafio "semanal" proposto no podcast "Gente que Escreve", episódio #30. A proposta do de...