Fagulha

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A fome veio ao seu encontro como uma centelha caindo sobre a palha seca. Uma pequena chama que consumiu suas forças, tornando-o debilitado e embaralhando seu raciocínio. Naquele momento, ele era apenas vontade de viver em um mundo de migalhas.

Cambaleante, o homem cego, de sobretudo puído, barba e cabelos grisalhos, lutava para que as pernas se mantivessem firmes sobre a neve. "Um passo de cada vez", ruminou.

Dois cães ofegantes emparelhavam sua caminhada - um vira-lata de pelo amarelado e uma fêmea que mais parecia uma miniatura de urso polar -, cortando a tundra com valentia, até que, depois de uma exaustiva jornada, alcançaram um terreno coberto por grandes árvores.

- Tem que haver alguma coisa para comer aqui - apesar da deficiência visual, ele atentou para as mudanças no cenário ao ouvir o farfalhar da vegetação e resvalar em alguns ramos.

A floresta diante deles era grandiosa. Os troncos apontavam para o alto e se ramificavam em centenas de galhos entrelaçados caoticamente. O verde era ralo e exibia certa melancolia. Uma representação do pessimismo que pairava há dias.

Adentraram sem cerimônia e, apesar do cansaço evidente, fuçaram arbustos e procuraram qualquer coisa mastigável que pudesse diminuir seu desespero. No entanto, o fracasso na missão era quase tangível e os cachorros magros expunham sua frustração em ganidos que mais pareciam súplicas.

Com o passar dos minutos, o desconforto cresceu e o homem caiu de joelhos, com as mãos sobre o estômago. Sua face tocou o solo gelado e os pensamentos foram transpassados por dúvidas sobre a morte: "Vou morrer aqui sozinho? Meus cães vão me devorar? O que fizemos para merecer isso?".

Ainda estava imerso em lamúrias quando foi despertado pelo latido agudo da cadela e sua correria em direção ao coração da floresta.

- Ei! Pérola! - O susto revigorou um pouco sua energia. - Volte aqui!

O outro cachorro seguiu o mesmo percurso.

- Rasteira! Você também, seu filho da puta? - Rangeu, pondo-se em pé. - Não me abandonem!

Os ruídos dos cães eram bastante audíveis. O velho os seguiu de maneira trôpega. Poucos passos depois, localizou-os, nervosos, aos pés de uma árvore que emanava cheiro de vida e que possuía um caule robusto, totalmente envolto por cipós, amoras e uma infinidade de folhas. Verde vívido, como se a natureza houvesse abraçado calorosamente apenas aquele vegetal, destacando-o de tudo ao redor.

O homem afagou os animais com um sorriso carregado de esperança e reparou que ambos pareciam intrigados com algo acima de sua cabeça. Salivando, imaginou um ninho com ovos; um piado confirmou suas suspeitas.

- Oh! Meu Deus! - Eufórico, deu a escalar com o que restava de suas forças. - Hoje não dormiremos de barriga vazia!

Deitado sobre um galho, arrastou-se cuidadosamente para alcançar seu objetivo, guiando-se pelos pios. Cada pequeno avanço era comemorado com gargalhadas crescentes, mas sua voz emudeceu ao tocar algo que demorou a identificar: o que pensava ser um ninho, na verdade se tratava de um arremedo de espinhos e, em seu centro, uma espécie de concha oca emulava um pássaro sempre que o vento soprava.

- O que é isso? - Dedilhou o objeto com curiosidade e atentou que, logo abaixo da camada verdejante que cobria o galho, escamas se ocultavam. - Isso é... uma cauda? Merda!

Ainda organizava seus pensamentos quando uma pancada o fez desmoronar de costas no chão, sob latidos frenéticos. Aflito por mudar da posição de caçador para presa, sentiu a presença de algo se debruçando sobre si.

O horror o arrebatou ao toque de uma haste viscosa sobre suas pálpebras, algo que definiu em meio ao pânico como uma língua.

- NÃO!

O beijo da morte tocou sua alma, mas, enquanto gritava, a criatura o abandonou e rumou para outra direção, deixando-o atônito.

Rolou no chão entre os próprios gemidos, uivos e o som torturante de algo sendo mastigado a poucos metros de onde agonizava. Era o terrível som de ossos triturados. "Rasteira! Pérola!", pensou, preocupando-se com seus companheiros naquele momento fatídico.

Após alguns segundos que pareceram intermináveis, a coisa subitamente partiu e o caos desapareceu, deixando no ar um silêncio funesto.

O líquido gelatinoso excretado pela criatura ainda lhe cobria os olhos. Tocou o rosto, pensativo, sentindo o muco que lhe descia pela face: "Aquela coisa se apiedou ou não quis devorar um ser defeituoso como eu?", questionou-se, numa mescla de alívio e amargura. Todavia, nada o preocupava mais do que a provável morte de suas mascotes. Berrou seus nomes à brisa gelada, mas ninguém o respondeu. Ali, na bela paisagem invernal, estava mais miserável do que em qualquer outro momento de sua vida.

À medida que rastejava para longe daquele cenário, tateou dezenas de amoras espalhadas na neve e guardou-as para si. Naquele momento, um focinho úmido roçou em sua mão e ele pôde reconhecer Rasteira, apalpando suas orelhas caídas. Abraçou o animal aos prantos e lamentou por Pérola.

Apesar de a consternação ser evidente em seu semblante, uma fagulha de esperança ardeu em seu coração.

- Como eu disse, meu garoto, hoje não dormiremos de barriga vazia - pôs algumas frutas no bolso e outras na palma da mão e esperou o animal devorá-las até que ficasse satisfeito. Agarrou-se àquele momento efêmero como seu refúgio e sentiu-se afortunado por ter sobrevivido a mais um dia ao lado de um amigo.


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