Eu era um menino de estatura média, pele clara, cabelos lisos, partidos de lado e olhos castanhos escuros, com um semblante que sorria sem sorrir, voltava da escola com minha mochila nas costas, minha jaqueta jeans surrada, de um azul desbotado. Caminhava na beira da calçada em linha reta, de braços abertos, tentando me equilibrar, eu traçava esse trajeto todos os dias religiosamente, eram 602 passos até a escola, eu sei por que os contava, todos os dias.
Morava num bairro perfeitamente projetado, de quadras milimetricamente retas e impecavelmente quadradas, umas iguais as outras, bem limpa, arborizada, e muito, muito tranquila.
Já estava me aproximando de minha casa, passava em frente da terceira casa antes da minha. Uma casa de muros formados por pilares de concretos altos que transmitia imponência, porém, contrastava com um portão baixo de madeira já podre, caindo aos pedaços — algo bastante incomum naquele bairro — e um gramado sempre verde e perfeitamente plano.
Era a casa do Sr. e Sra. Robert, um casal de velhinhos, moravam sozinhos ali com seu cão, Boris, um pitbull musculoso, marrom, de peito e barriga branca, com um ar imponente. Latia para qualquer um que passasse em frente sua casa, e continuava a latir nas meias-horas seguintes depois que transeunte já estivesse a quilômetros de distância. Boris irritava toda a vizinhança, mas ninguém se dispunha a reclamar com os Robert, eram os moradores mais antigos da pequena e silenciosa Bellefleur.
O cão latiu, me assustando e fazendo-me desequilibrar e sair da calçada e quase ser atropelado por uma criança num triciclo. Balbuciei um palavrão e o encarei irritado bem no fundo de seus olhos, como que tentando hipnotizá-lo e fazê-lo parar de latir — como se tivesse superpoderes — mandei-o calar a boca, mas ele não obedecia. Cerrei os punhos, e continuei encarando-o, sentia tanta raiva, ainda não compreendo o porquê, apenas me desequilibrei, e ele era apenas um cão, irracional.
Aquilo me irritou a ponto de eu avançar pra cima dele e chutar o portão, uma farpa entrou em meu pé, me deixando ainda mais irritado, um homem esgueirou-se pela porta da casa, era o senhor Robert, então me afastei do portão, fingi pegar alguma coisa no chão, quando saí de suas vistas, corri em disparada pra minha casa, olhei para trás umas duas vezes, em minha mente jurei dar uma lição naquele cão. Patético eu sei.
Nas noites seguintes estive pensando, esquematizando, planejando, e o momento certo havia chegado, os Robert haviam viajado e Boris estava sozinho vigiando a casa. Era 1:00 h da madrugada de um domingo de lua cheia, todos em casa estavam dormindo, e já não transitava mais ninguém na rua a essa hora.
Então saí de casa e caminhei uns cem metros. Parei. Agora estava em frente à casa dos Robert, a lua se escondia por detrás das nuvens escuras e densas que prenunciavam um temporal. Boris dormia lá nos fundos, nos dias anteriores pensei em colocar um monte de comprimidos tranquilizantes - que achei na prateleira da cozinha - num bolo de carne e atirar ao Boris, mas decidi que não, ele deveria estar acordado quando acontecesse. Bem acordado. E para isso eu havia entalhado um cabo de vassoura velha que achei na dispensa de casa, a ponta estava tão fina, quanto a ponta de uma agulha.
Pulei o portão de madeira já podre e úmido, o portão rangeu, parei, ouvi o ruído das correntes, e vi Boris levantando a cabeça através de sua sombra projetada na parede, vi também quando ele abaixou a cabeça novamente.
Continuei adentrando o quintal, com passos tão sutis quanto o de um felino que se prepara para dar o bote, meu coração batia disparado, eu suava frio, mas por dentro eu queimava. Um vento forte e congelante tomou o ambiente, tão forte que fazia os fios dos postes zunirem, estava muito escuro, mas minhas vistas já se acostumavam à escuridão. Entrei tateando a parede da garagem que dava acesso aos fundos da casa, e era lá que Boris estava, eu segurava firme o cabo de vassoura, segurava tão forte que já parecia ser uma extensão de meu corpo. Quando me dei por conta, via dois círculos brilhantes na escuridão que se aproximavam cada vez mais rápido, e junto um rosnado, arqueei a lança improvisada, e senti um corpo pesado se lançar sobre mim e me jogar no chão. O cabo se partiu e apenas uma pequena parte penetrou o corpo dele. Minha cabeça bateu forte contra o chão, meus pés estavam agora sendo pressionados entre seus dentes, ele puxava e sacudia como um brinquedo a ser destroçado, peguei um pedaço do cabo de vassoura que havia se partido e finquei-o em seu pescoço, ele resistiu por um tempo, mas logo caiu no chão, provocando um som oco.
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Sorria para a Morte
Historia CortaQuando senti o gosto de sangue em minha boca pela primeira vez, foi como se eu estivesse provando uma droga altamente viciante, a minha mente e meu corpo passariam a suplicar só por mais um pouco daquilo, só mais uma gota. Sentir o corpo de algo viv...