Capítulo 7

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  O tédio é a grande enfermidade da escola, o tédio corruptor que tanto se podegerar da monotonia do trabalho como da ociosidade.Tínhamos em torno da vida o ajardinamento em floresta do parque e a toalhaesmeraldina do campo e o diorama acidentado das montanhas da Tijuca, ostentosasem curvatura torácica e frentes felpudas de colosso; espetáculos de exceção, pormomentos, que não modificavam a secura branca dos dias, enquadrados em pacotenos limites do pátio central, quente, insuportável de luz, ao fundo daquelas altíssimas paredes do Ateneu, claras da caiação, do tédio, claras, cada vez maisclaras.Quando se aproxima o tempo das férias. o aborrecimento é maior.Os rapazes, em grande parte dotados de tendências animadoras para a vidaprática, forjicavam mil meios de combater o enfado da monotonia. A folgança faziaépoca como as modas, metamorfoseando-se depressa como uma série de ensaios.A peteca não divertia mais, palmeada com estrépito, subindo como foguete,caindo a rodopiar sobre o cocar de penas? Inventavam-se as bolas elásticas.Fartavam-se de borracha? Inventavam-se as pequenas esferas de vidro.Acabavam-se as esferas? Vinham os jogos de salto sobre um tecido de linhas a gizno soalho, ou riscadas a prego na areia, a amarela, e todas as suas variantes,primeira casa, segunda casa, terceira casa, descanso, inferno, céu, levando-se àponta de pé o seixozinho chato em arriscada viagem de pulos. Era depois a vez dosjogos de corrida, entre os quais figurava notavelmente o saudoso e rijochicote-queimado. Variavam os aspectos da recreação, o pátio central animava-secom a revoada das penas, o estalar elástico das bolas, passando como obuses,ferindo o alvo em pontaria amestrada, o formigamento multicor das esferas de vidropela terra, com a gritaria de todas as vozes do prazer e do alvoroço.Depois havia os jogos de parada, em que circulavam como preço as penas,os selos postais, os cigarros, o próprio dinheiro. As especulações moviam-se como obem conhecido ofídio das corretagens. Havia capitalistas e usurários, finórios epapalvos; idiotas que se encarregavam de levar ao mercado, com a facilidade deque dispunham fora do colégio, fornecimentos inteiros, valiosíssimos, de Mallats eGuillots que os hábeis limpavam com a gentileza de figurões da bolsa, e selosinestimáveis que os colecionadores práticos desmereciam para tirar sem custo;fumantes ébrios de fumo alheio, adquirido facilmente no movimento da praça,repimpados à turca sobre os coxins da barata fartura.As transações eram proibidas pelo código do Ateneu. Razão demais parainteressar. Da letra da lei, incubados sob a pressão do veto, surgiam outros jogos,mais expressamente característicos, dados que espirravam como pipocas, naipesem leque, que se abriam orgulhosos dos belos trunfos, entremostrando a pança dorei, o sorriso galhardo do valete, a simbólica orelha da sota, a paisagem ridente doás; roletas miúdas de cavalinhos de chumbo; uma aluvião de fichas em cartão,pululantes como os dados e coradas como os padrões do carteiro.A principal moeda era o selo.Pelo sinete da posta dava-se tudo. Não havia prêmios de lição que valessemo mais vulgar daqueles cupons servidos. Sobre este preço, permutavam-se osdireitos do pão, da manteiga ao almoço, da sobremesa, as delicias secretas danicotina, o próprio decoro pessoal em si.A raiva dos colecionadores caprichando em exibir cada qual o álbum maiscompleto, mais rico, transmitia-se a outros, simples agentes de especulação; destesainda a outros com a sedução do interesse. No colégio todo, só Rebelo talvez e oRibas, o primeiro fundeado no porto da misantropia senil que o distanciava domundo tempestuoso, o outro a fazer perpetuamente de anjo feio aos pés de NossaSenhora, escapavam à mania geral do selo, melhor, à geral necessidade depremunir-se com valor corrente para as emergências.No comércio do selo é que fervia a agitação de empório, contratos de cobiça,de agiotagem, de esperteza, de fraude. Acumulavam-se valores, circulavam,frutificavam; conspiravam os sindicatos, arfava o fluxo, o refluxo das altas e dasdepreciações. Os inexpertos arruinavam-se, e havia banqueiros atilados, espapandobanhas de prosperidade.Falava-se, com a reserva tartamuda dos caudatários do milhão, de fortunasimponderáveis... Certo felizardo que possuía aqueles imensos exemplares daprimeira posta na Inglaterra, os dois raríssimos, ambos! o azul e o branco, de 1840,com a estampa nítida de Mulrady: a Grã-Bretanha, braços abertos sobre as colônias,sobre o mundo; à direita, a América, a propaganda civilizadora, a conquista dasavana; à esquerda, o domínio das Índias, cules sob fardos, dorsos de elefantessubjugados; ao fundo, para o horizonte, navios, o trenó canadiano que foge àdisparada das renas; no alto, como as vozes aladas da fama, os mensageiros dametrópole.Jóias deste preço imobilizavam-se nas coleções, inalienáveis por naturezacomo certos diamantes. Nem por isso era menos ardente a mercancia na massafebril da pequena circulação; da quantidade infinita dos outros selos, retangulares,octogonais, redondos, elipsoidais, alongados verticalmente, transversalmente,quadrados, lisos, denteados, antiqüíssimos ou recentes, ingleses, suecos, daNoruega, dinamarqueses, de cetro e espada, suntuosos Hannover, como retalhos detapeçaria, cabeças de águia de Lubeck, torres de Hamburgo, águia branca daPrússia, águia em relevo da moderna Alemanha, austríacos, suíços de cruz branca,da França, imperiais e republicanos, de toda a Europa, de todos os continentes, coma estampa de um pombo, de navios, de um braço armado; gregos com a efígie deMercúrio, o deus único que ficou de Homero, sobrevivo do Olimpo depois de Pã;selos da China com um dragão espalhando garras; do Cabo, triangulares; darepública de Orange com uma laranjeira e três trompas; do Egito com a esfinge e aspirâmides; da Pérsia de Nassered-Din com um penacho; do Japão, bordados,rendilhados como panos de biombo e de ventarolas; da Austrália, com um cisne; doreino de Havaí, do Rei Kamehameha III; da Terra Nova com uma foca em campo daneve; dos Estados Unidos, de todos os presidentes; da república de São Salvadorcom uma auréola de estrelas sobre um vulcão; do Brasil, desde os enormesmalfeitos de 1843; do Peru com um casal de lhamas; todas as cores, todos ossinetes com que os estados tarifam as correspondências sentimentais ou mercantis,explorando indistintamente um desconto mínimo nas especulações gigantescas e oimposto de sangue sobre as saudades dos emigrados da fome.A sala geral do estudo, comprida, com as quatro galerias de carteiras e aparede oposta de estantes e a tribuna do inspetor, era um microcosmo de atividadesubterrânea. Estudo era pretexto e aparência, as encadernações capeavam mais aesperteza do que os próprios volumes.A certas horas reunia-se ali o colégio inteiro, desde os elementos de primeirasletras até os mais adiantados cursos. Agrupavam-se por ordem de habilitações; oabc diante da porta de entrada, à direita; à extrema esquerda, os filósofos,cogitadores do Barbe, os latinistas abalizados, os admiráveis estudantes do alemãoe do grego. Baralhavam-se as três classes de idades; podia estar um marmanjoempacado à direita na carteira dos analfabetos, e podia estar um bebê prodígio adesmamar-se na filosofia da esquerda. O acaso da colocação podia sentar-me entreo Barbalho e o Sanches, como podia da afeição do Alves desterrar-me uma légua.Dependia tudo do adiantamento.Como compensação destas desvantagens havia os telégrafos e acorrespondência de mão em mão. Os fios telegráficos eram da melhor linha deAlexandre 80, sutilíssimos e fortes, acomodados sob a tábua das carteiras, mantidaspor alças de alfinete. Em férias desarmavam-se. Dois amigos interessados emcomunicar-se estabeleciam o aparelho; a cada extremidade, um alfabeto em fita depapel e um ponteiro amarrado ao fio; legitimo Capanema. Tantas as linhas, que ascarteiras vistas de baixo apresentavam a configuração agradável de citarasencordoadas, tantas, que às vezes emaranhava-se o serviço e desafinava a citarados recadinhos em harpa de carcamano.Havia o gênio inventivo no Ateneu, esperanças de riqueza, por algumadescoberta milagrosa que o acaso deparasse à maneira do pomo de Newton.Ocorre-me um perspicaz que contava fazer fortuna com um privilégio para explorarouro nos dentes chumbados dos cadáveres, uma mina! Foi assim a invençãomalfadada do telégrafo-martelinho. Tantas pancadinhas, tal letra; tantas mais, tantasmenos, tais outras. Os inventores achavam no sistema dos sinais escritos adesvantagem de não servir à noite. O elemento base desta reforma era umaconfiança absoluta na surdez dos inspetores; aventuroso fundamento, como seprovou.As primeiras pancadinhas passaram; apenas os estudantes mais próximossorriam disfarçando. Mas o martelinho continuou a funcionar e ganhou coragem. Nosilêncio da sala, gotejavam as pancadas, miúdas, como o debicar de um pintainhono soalho.No alto da tribuna, o Silvino coçou a orelha e ficou atento; começava aimplicar com aquilo. Silêncio... silêncio, e as pancadinhas de vez em quando.Foi o diabo. Inesperadamente precipitou-se do alto assento como um abutre,e com a finura do oficio foi cair justo sobre o melhor de um despacho. Seguiu-se adevastação. Examinando a carteira, descobriu a rede considerável dos outrostelégrafos. Foi tudo raso. Brutal como a fúria, implacável como a guerra — oh Havas!— o Silvino não nos deixou um fio, um só fio ao novelo das correspondências! Decarteira em carteira, por entre pragas, arrancou, arrebentou, destruiu tudo, ovândalo, como se não fosse o fio telegráfico listrando os céus a pauta larga doshinos do progresso e a nossa imitação modesta uma homenagem ao século.A violência não fez mais que aumentar o tráfego dos bilhetinhos e suspendertemporariamente a telegrafia.De mão em mão como as epístolas, corriam os periódicos manuscritos e osromances proibidos. Os periódicos levavam pelos bancos a troça mordaz, aoscolegas, aos professores, aos bedéis: mesmo a pilhéria blasfema contra Aristarco,uma temeridade. Os romances, enredados de atribulações febricitantes, atraindo nodescritivo, chocantes no desenlace, alguns temperados de grosseira sensualidade,animavam na imaginação panoramas ideados da vida exterior, quando não há maiscompêndios, as lutas pelo dinheiro e pelo amor, o ingresso nos salões, o êxito dadiplomacia entre duquesas, a festejada bravura dos duelos, o pundonor de espada àcinta; ou então o drama das paixões ásperas, tormentos de um peito malsinado esublime sobre um cenário sujo de bodega, entre vômitos de mau vinho e palavradasde barregã sem preço.Com a proximidade das férias de ano, tudo desaparecia. O aborrecimentoimperava.A impaciência da expectativa de livramento fazia intolerável a reclusão dosúltimos dias.Organizavam-se os preparativos para a grande exposição de trabalhos daaula de desenho, as aulas primárias estavam a ponto de entrar em exames, dosparticulares semestrais, em que o diretor sondava o aproveitamento. Estes cuidadosnão podiam combater a inércia expectante dos ânimos. 

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