Hoje teria um jogo da seleção brasileira de futebol, por ser um clássico internacional e os horários não serem locais, a partida estava agendada para as 10h da manhã.
Cheguei cedo ao posto de saúde e lá estavam 16 pessoas me esperando; dificilmente eu conseguia chegar antes das 8h da manhã para atender, pois tinha que diariamente ir até a sede da secretaria de saúde pegar o carro da unidade para, em seguida, percorrer uns 30km numa estrada de barro até a sede da localidade onde ficava o posto de saúde.
Percebi que na minha cidade de origem somos mais ligados ao futebol, e aqui, em nenhum momento, ouvia comentários sobre o jogo.
Comecei a atender os pacientes e quem sabe os problemas não fossem tão complicados que demandassem muito tempo nas avaliações clínicas e eu ainda pudesse ver parte do segundo tempo.Entrou, então, o primeiro paciente. Era uma senhora com um filho pequeno no colo.
— Bom dia.
— Bom dia — respondeu ela sentando —se na cadeira em frente à minha mesa.
— O que está acontecendo com a criança?
Meu pequeno paciente não parecia ter o que chamamos de sinais de alerta: febre, face de dor, sinais de desidratação, pelo contrário, se mostrava ativo olhando tudo em volta.
— Este menino anda provocando muito. — Puxou o garoto para que sentasse direito em seu colo.
— Provocando? Como assim?
— Hoje mesmo 'doutô' ele já provocou o pai e a tia, e foi muito.
— Ele é muito agitado? Talvez precise conversar com um psicólogo.
Quando falei isso vi a expressão da mãe mudar como se não entendesse o que eu quis dizer.
— Mas ele está doente — insistiu a senhora.
Então percebi que havia perdido algo, que provavelmente não compreendi na fala dela. Decidi chamar a enfermeira, ela é da região e deveria entender melhor o que ela queria me dizer, afinal eu já suspeitava que algumas palavras poderiam ter significados diferentes devido o regionalismo.
A enfermeira chamava —se Cristina, ele veio bem rápido.— Sim doutor Adriano, está precisando de algo.
Fiz um gesto para que se aproximasse e falei mais próximo a ela.
— Me ajude numa coisa por favor. — Fiz uma expressão de que algo estava fora do lugar.
— Com certeza... o que foi?
— Esta senhora me diz que o filho dela está provocando as pessoas, e ela o acha doente.
— Doutor... — deu uma pequena pausa para sorrir — provocar no Ceará é a mesma coisa que vomitar.
Nunca havia imaginado isso, naquele mesmo dia descobri várias palavras típicas do 'cearês' como por exemplo:
Estalicido = coriza
cruz = Tórax
Chapa = radiografia
Landra = módulo, íngua.
A manhã terminou, assim como as consultas daquele horário e pensei que não haveriam mais surpresas.
Eu já estava conformado de ter perdido o jogo da seleção. Não haviam TVs no nosso posto de saúde.
Fomos ao lado de fora pegar o carro para irmos almoçar e um simpático senhor se aproximou.
— Doutor! Bom dia. Eu tenho um comercio ali na esquina... está passando um jogo do Brasil.
Provavelmente ele soube de algum comentário meu na lá unidade de saúde.
— Bom dia. É verdade. Deve estar acabando. Quanto será que está a partida?
— Não sei não senhor..., mas sempre que tiver um joguinho pode aparecer lá no meu comércio, eu tenho uma 'trena paranóica' lá instalada.
"Realmente eu iria ter que me adaptar com os novos vocabulários daquele humilde e simpático povo", pensei com um largo sorriso.
***
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Memórias de um Médico no Sertão
Short StoryQuando um médico recém formado prefere, antes de iniciar a sua especialização médica, atuar em comunidades bem humildes no interior do Ceará. Sem nunca ter vivido um dia fora dos grandes centros urbanos, terá que se deparar com situações inusitadas...