Um hospital do interior é meio que faz de tudo. Atende-se crianças, adultos e idosos de ambos os sexos. Um médico recém-formado, tenho que admitir, não sai da faculdade 100% preparado para todas as situações. Embora tenhamos estudado cada clínica, ainda nos falta muito da vivência e experiência que só a prática nos permitirá sentirmos seguros.
Naquela noite eu era o único médico do hospital. Lá se realizava desde atendimentos clínicos, algumas pequenas urgências e alguns partos normais. Este último me deixava extremamente estressado.
Mal iniciou o plantão, e durante a troca de roupa no repouso médico o telefone já toca. Um dos sons que um recém-formado mais detesta; significa "estamos precisado do senhor aqui no setor", e isso significa bronca. Atendi e realmente estavam precisando de minha presença no setor de Pronto Atendimento. Sai então o mais rápido que pude.
Ao chegar lá, um técnico de enfermagem estava contendo, com algumas gases, um pequeno sangramento da região da testa de um rapaz, logo acima do nariz. Ele estava sentado e bem acordado, mas chorando bastante. Uma outra mulher estava ao seu lado tentando acalmá-lo.
— Injeção não! Injeção não! —Dizia aquele rapaz quase adulto chorando como uma criança.
— Você não sabe o que é dor. Dor é parir uma criança. — Interveio a mulher acompanhante, cujo tom de voz me chamou atenção. Percebi, na verdade, tratava-se de um travesti.
O rapaz seguia inquieto, mal me deixava examiná-lo. Segurava minhas mãos. Uma agonia. Ao menos foi possível observar que a lesão era bem pequena, uma escoriação apenas, mas havia um inchaço na base do nariz e isso sugeria a possibilidade de uma fratura em algum dos ossos desta região. Fiz uma radiografia e preenchi um encaminhamento orientado a acompanhante dele, a leva-lo amanhã cedo a um hospital de urgência em trauma. Eu sabia que sem sangramento e sem ter dificuldade para respirar um bom analgésico seria a conduta mais apropriada num primeiro momento.
De repente escutei um barulho de uma discussão vindo do início do corredor, onde ficava a recepção. Mal me posicionei na porta para ver do que se tratava e estavam lá um segurança e um paciente trocando solavancos e bofetadas. Não tinha a mínima ideia do que se tratava até quando o paciente veio na minha direção, uma das saídas do hospital passava em frente da sala de urgências.
— Vou buscar meu revólver. — Disse olhando em minha direção.
Num ato reflexo respondi:
— Pois traga um maior do que o meu! — Disse olhando direto ao paciente, que saiu em seguida em disparada.
Eu não sabia se realmente iria voltar e cumprir a promessa e não estava com nenhuma intenção de esperar para ver.
— Fechem as portas. Liguem para a polícia. Hoje só atenderemos urgências após identificação.
Olhei para o segurança que havia brigado com aquela pessoa e fui em sua direção.
— O que ele queria? Por que brigaram?
— Doutor, aquele senhor já é conhecido aqui no hospital. Ele só chega fora de horário, onde só são atendidas emergências e quer ser atendido. Esta hora da noite ele queria resolver a unha encravada dele que há meses o incomoda e ele nunca procurou atendimento antes. A enfermeira da triagem orientou que este procedimento só era feito durante o dia e ele partiu para cima dela. Foi aí que eu entrei na história.
— Você fez certo!
Todas as portas foram fechadas. A polícia sequer compareceu, para nossa sorte o paciente enfurecido também não. Pensei que não haveria mais novidades por esta noite e fui ao repouso médico. Instantes depois o telefone volta a tocar.
— Doutor, o senhor pode vir até a sala de parto? Precisamos de sua ajuda.
Qualquer enfermeiro parteiro, entenda —se obstétrico, experimentado sabe mais que qualquer médico recém-formado. Isso não é segredo. Quando elas nos pedem ajuda pode crer que a coisa não deve estar boa. Rapidamente me pus de pé e fui até a sala de parto. A cada passo dado por mim eu torcia para que, ao chegar, a situação já tivesse sido resolvida.
Cheguei junto a porta, respirei fundo e entrei.
—Oi, boa noite! O que está acontecendo. — Tentei mostrar —me calmo.
Estava lá o enfermeiro em frente a cama com uma gestante em momento expulsivo e bebê coroando. Isso significa que já é possível visualizar o couro cabeludo do bebê no canal de parto.
— Doutor Adriano, faz uns 15 minutos que não evolui o parto. A paciente não é colaborativa, grita muito e perde a força.
Lembrei —me dos meus professores de obstetrícia, que diziam que gritar muito é direcionar a força para o lado errado. A força deveria ser para baixo e daquela forma se perdia garganta afora. Me posicionei ao lado da gestante, pus a mão sobre seu abdome —assim poderia sentir as contrações — e tentei acalmá-la.
—Tenha calma vai tudo dar certo.
Aguardei uma próxima contração, calcei as luvas e vesti o capote me posicionando esperando o momento certo para intervir. Assim que o útero começa a contrair a cabeça da criança força a saída, utilizei as mãos para proteger o períneo e tentar livrá-lo tentando evitar a episiotomia — Corte realizado meio que lateral e posterior pala ampliar a passagem do bebê. Enfim nasceu!
O cansaço é inexplicável, ainda era recém-formado, mas já descobrira que preocupação cansa o corpo mais que academia, depois de um plantão desse eu merecia dormir um pouco. Colocamos o bebê sobre a mãe. Ele estava bem, chorou logo, estava corado e respirando sem desconforto. Uma cena bonita. Acho que esta é a única dor que o ser humano sente seguida de um prazer imensurável.
— Gerardo. — Olhei para o enfermeiro.
— Sim doutor!
— Acho que vou para o repouso. Tomara que tenhamos uma noite tranquila.
— Deus lhe ouça! — Virei em direção ao corredor enquanto ouvia ele repetir "Deus lhe ouça!". Estava cansado, mas feliz.
O resto do plantão se passou sem nenhuma ocorrência importante, levantei às 6 horas da manhã, lavei o rosto, escovei os dentes e preparei as minhas coisas para sair do plantão. Por volta das 7 horas fui a recepção aguardar o meu colega médico que me renderia o horário, quando se aproximou o motorista do plantão da noite.
— Doutor Adriano, mas que castigo o senhor me deu?
— Como assim? O que aconteceu? — Perguntei sem compreender a que ele estava se referindo.
— O Senhor encaminhou aquele rapaz e o travesti para uma emergência de trauma. Eu os levei, para Sobral, andei uns três hospitais e ninguém os queria atender aquele horário.
— Mas eu havia orientado que eles só precisavam ir pela manhã, já estavam com as escoriações limpas e com analgésicos.
— Pois não foi o que o que eles disseram, chegaram para mim já pedindo para serem levados.
— Olha Joaquim. Desculpe —me algum mal-entendido, mas todo encaminhamento de urgência deve ser conferido com o pessoal de enfermagem, o paciente não pode ir só. Você tentando ajudar acabou não fazendo o certo.
— Agora eu aprendi doutor. Vou conferir tudo... queria que o senhor visse a bagunça que os dois faziam na ambulância, uma gritaria. Nunca mais passo por isso.
Meu colega médico chegou. Estava na hora de ir embora e descansar um pouco. O suficiente para começar o próximo plantão. Enquanto ia em direção a minha casa, fiquei imaginando o Joaquim com aqueles dois, um gritando e outro histérico. Acho que essa ele aprendeu de verdade.
***
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Memórias de um Médico no Sertão
Historia CortaQuando um médico recém formado prefere, antes de iniciar a sua especialização médica, atuar em comunidades bem humildes no interior do Ceará. Sem nunca ter vivido um dia fora dos grandes centros urbanos, terá que se deparar com situações inusitadas...