Inverno - Parte I

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Abriu os olhos.

Até ali, tudo o que sabia fazer era farejar escassamente e ouvir barulhos próximos. Em seu confuso começo de vida ouvira muitos ganidos fracos, sons parecidos com os choros agudos que ele mesmo desatava a soltar. Quem seriam estes? Julgava que deviam ser como ele, desorientados e reféns de um mundo que ainda não conheciam. Pois bem, ele achava que havia mais de um destes semelhantes, dois na verdade, considerando os tons que ouvia. Porém, esta sinfonia de lamentos tornou-se menos completa após um tempo: só ouvia um tom senão seu agora.

O que lhe marcara a memória eram os momentos que tateava cegamente em busca das tetas da mãe, procurando o leite que lhe mantinha. A mãe: desde que se lembra por existir, já sabia quem era e estava totalmente ligado a ela. Quão forte era a sensação de se aninhar no calor do corpo dela, sentir seu pelo macio e ali repousar.

Quando por fim enxergou o mundo pelos olhos, a primeira coisa que viu foi a face da mãe: serena, terna. Ela era branca como a neve que caía naquele momento, e tinha olhos amendoados como nunca mais viu depois. Junto dela se encontrava o que julgava ser sua irmã: ainda com os olhos fechados, comprimida e buscando calor materno. Conseguiu vê-la de imediato, pois tinha os pelos muito escuros, negros como a noite, se contrapondo aos da mãe. E foi neste mesmo momento que ele viu se aproximar um vulto muito negro, o que lhe causou certo medo de início, fazendo-o recuar junto à genitora assim a irmã se encontrava. Então viu o que depois se mostrou na figura de um macho de porte grande, forte, escuro como a irmã e sem demonstrar medo algum em seu espírito. Ele entendeu: este era seu pai. O mesmo se aproximou, olhou-o por um tempo e então lhe lambeu a face em sinal de carinho. Assim também fez com a irmã e depois com a mãe, a sua parceira. O espírito da matilha era forte naquele momento, ele podia sentir.

Aquilo não durou muito tempo, pois o pai se colocou repentinamente em alerta quando algo se aproximou ali na floresta, próxima à entrada da caverna onde estavam: tinha pelos muito grossos, pardos, garras nas patas traseiras e dianteiras, e era imenso. O invasor se colocou em pé sobre as patas traseiras e começou a urrar de maneira terrível. Tudo aconteceu muito rápido. O pai uivou muito alto, sinalizando emergência e convocando outros. Ele se colocou em posição de defesa entre a família e o inimigo e ao mesmo tempo a mãe correu para tirar os filhotes dali. Ela teve que fazer uma escolha: levar ele ou a irmã. Com dor no coração, a mãe o pegou pela parte de trás do pescoço, e correu.

Naquele desespero total, tudo o que viu foi a irmã sendo deixada para trás, ainda cega e indefesa. Ouviu um urro de dor do inimigo seguido do grito do pai e ainda conseguiu ouvir o barulho de semelhantes ladrando com espírito de combate, talvez estivessem chegando para ajudar na luta. Mas por fim, ouviu novamente outro grito do pai, parecia ser final, e a mãe confirmou isso quando sentiu que o espírito dela fraquejou. Tudo o que conseguiu ouvir depois foi respiração ofegante, o coração disparado da mãe e o som de suas patas batendo e rasgando sem parar a densa neve. Ela continuou por ele, e só por ele, pois a matilha não mais existia.



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