QUATRO

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29 de setembro de 2012.

Parecia que eu estava em um estado de coma. Eu estava um pouco exausto e dolorido mas não era grande coisa, provavelmente deve ter sido pela posição na qual eu estava e é claro que seria impossível acordar no chão e não sentir alguma dor no corpo. Me levantei e me alonguei, estalando alguns ossos das mãos e da coluna. Quando meus olhos bateram no relógio em cima da mesinha, eram exatas sete horas da noite, não era possível eu ter dormido tanto tempo assim. Saí apressado do quarto e desci as escadas e assim que cheguei na sala já dava para ouvir as vozes de meus pais na cozinha, então me direcionei para lá.

— Olá querido... Parece que alguém pegou um sono pesado, essa tarde, dormiu bem? – minha mãe perguntou assim que notou minha presença no ambiente. Aposto que se ela visse por ela mesma que eu estava desacordado e no chão, ficaria desesperada. Então cheguei a conclusão de que meu pai deve ter me visto primeiro e contado para ela que eu estava "apenas dormindo"

— Muito bem. Vocês chegaram tem muito tempo? – perguntei me debruçando sobre a bancada e mexi em uma maçã, rejeitando-a logo em seguida.

— Faz mais ou menos meia hora, sua mãe chegou faz dez minutos. – meu pai respondeu.

— Está bem, vou subir...

— Não vai comer? – minha mãe me cortou, antes que eu sequer pudesse terminar minha frase. "Vou tomar banho e vou descer, mãe.", Assim que respondi ela relaxou sua expressão confusa e voltou a guardar as bolsas de compras que estavam espalhadas pelo chão.

Conforme o dito, subi e tomei meu banho. Não demorei muito pois ainda queria ler mais uma carta, depois da janta, é claro. Charlotte deixou bem claro nas cartas que para onde ela havia ido era um lugar dez vezes melhor do que sua própria vida, portanto, sua vida deveria ser algo muito ruim para ela achar que estar sozinha com Mike era um paraíso. Mas depois do que aconteceu hoje, eu não chamaria bem de "paraíso", não era bom o suficiente para merecer este nome, ou então minha vida não era ruim o bastante para se comparar com uma alucinação. Mas ainda tinha o garoto do colar que se recusava a dizer seu nome. Charlotte havia ficado alguns dias em seu mundo particular sozinha, achando que tudo que existia ali era diferente de tudo já visto, até encontrar Mike. Mas eu não fiquei dias esperando pela recepção de alguém, na verdade foi a primeira coisa que me aconteceu, além de encontrar minha casa completamente sem cores e vazia.

O garoto me dizia que em algum momento as coisas iriam ficar difíceis e eu ficaria sem esperanças, assim precisando de algo para me puxar de volta do fundo do poço, o colar. Mas sequer havia se apresentado adequadamente e não queria dizer seu nome... Se ele não é esquisito eu não sei mais o que ele pode ser. Mas acima de tudo eu havia ficado fascinado com sua beleza natural de imediato. Seu sorriso era algo que me fazia querer admirá-lo por um longo período, seus olhos cor de avelã com um leve esverdeado me puxavam para si, assim como um imã poderia fazer. Possuía algumas tatuagens em torno dos braços, que não eram musculosos nem fracos mas ainda assim atrativos, apesar das mangas de sua blusa esconderem grande parte. Não sei exatamente por que estava pensando nessas coisas, mas era um absurdo não pensar na beleza exuberante daquele garoto.

Eu iria voltar, eu tinha absoluta certeza, e iria procurar saber mais sobre ele. Se Mike tinha algo a dizer sobre sua vida para Charlotte, esse garoto também poderia me contar alguma coisa.

Charlotte, novembro de 1996.

"Caro leitor,
Este é o meu sétimo dia em que tomo as pílulas. Desde o segundo dia venho me sentindo diferente, tenho tido mais sono que o normal e emagreci alguns quilos, não muito. Isso me preocupa um pouco, mas creio que não será um problema, deve ser apenas um efeito colateral das pílulas. Acharia estranho se não tivesse algum. Mike me trouxe flores azuis, imagino que ele conheça meus gostos até mesmo melhor do que eu. Ele me faz bem, e acredito que minha presença deva fazer o mesmo com ele, até porque todas as vezes que volto para lá seu sorriso fica cada vez mais radiante, cada vez mais feliz. Além de me dar flores, ele me beijou. E eu não recuei, pelo contrário, eu queria aquilo também, eu me sentia cada vez mais confortável com Mike em nosso mundo particular do que na minha própria vida real e desgraçada. Com ele eu sentia que alguém no mundo pudesse me amar de novo, amar a verdadeira pessoa que sou em meu interior e não repudiar o monstro envolvido em um mar de caos que existiu na antiga Charlotte. Ele consegue enxergar o que há de bom em mim. E eu acho que estou apaixonada. Isso é bom. E ruim.
- Charlotte."

×××

Acordei cedo, mas o tempo continuava pesado, com nuvens pesadas e minha energia também estava pesada. Sair da cama era uma coisa que se passava na minha cabeça, mas meus músculos não tinham capacidade para tal e muito menos eu queria. Mas fiz. Infelizmente. Olhei para o relógio e ainda eram sete e quarenta, sentei na cama e esperei a vontade de levantar derrotar a preguiça enorme que me assolava naquele momento.

Após tomar banho, descer e tomar café, ajeitar meu quarto e esperar meu pai eu já me sentia bem mais disposto a fazer qualquer coisa sem bocejar ou desejar me jogar em qualquer lugar para tirar uma soneca. Pelo menos uma coisa eu comecei a ter em comum com Charlotte: o sono excessivo. Mas não era como uma doença, eu ainda me sentia normal.

Meu pai rapidamente desceu as escadas e se juntou a mim na sala.

— Quanta energia, hein... – zombou ele, a julgar pela minha cara que deixava bem claro o motivo para tal zombaria.

— Não dormi muito bem... Está tudo pronto? – perguntei a respeito da papelada que ele ia levar para o próximo morador de nossa casa, após me deixar na escola, e pelo meu tom ele compreendeu o que quis dizer. Ele enfim havia conseguido.

— Sim, depois que deixar você na escola irei acertar alguns pontos-chave no contrato com o Sr. Iero para depois assinarmos. Me deseje sorte, filho. – ele estava falando animado e alegremente.

— É claro, pai... Vamos.

Ainda estava pensando na carta de Charlotte que li ontem, antes de dormir. Ela havia passado quase uma semana com Mike e estava se apaixonando por ele. Ele levava flores para ela e a deixava feliz, enquanto apenas a presença dela o fazia satisfeito. E quanto às minhas alucinações, eu queria mais. Eu queria descobrir mais. Eu queria saber quem Ele é, e seria a primeira coisa que eu faria quando chegasse em casa.

A viagem começou silenciosa até o telefone de meu pai tocar. Pelo maneira e sobre o que falava era evidente que estava se referindo ao Sr. Iero do outro lado da linha e parecia um pouco confuso ao ouvir o que o mesmo queria lhe falar. Ele apenas respondia "Ok, não há problema algum... Em meu escritório, na cidade... Estou indo agora para lá...". E eu imaginava exatamente o que iria acontecer.

— Gerard, você vai chegar um pouco atrasado, eu tenho que ir ao escritório agora e adiantar algumas coisas... Não irá demorar muito – explicou ele. Eu apenas assenti, em compreensão.

Estávamos indo por um caminho diferente do qual eu estava acostumado a traçar todos os dias. Meu pai dirigia um pouco mais rápido que o normal, mas com cautela. Não demoraria muito para eu tirar a minha carteira também. Admito que alguns anos atrás eu não cultivava o interesse por carros ou até mesmo dirigir, mas recentemente eu venho optando por isso. Paramos em frente ao prédio comercial, meu pai havia desligado o motor do carro e pegou algumas pastas no banco de trás. Assim que reviu todos os papéis e teve certeza que não esqueceu nenhum, seus olhos saltaram direto para as portas do edifício. Havia um homem e um garoto, que eu julgava ser seu filho, ao seu lado. Meu pai me cutucou e apontou para os dois, dizendo serem o Sr. Iero e seu filho. O menino estava de costas, parecia estar discutindo com o pai, pelas mãos que se agitavam pelo ar, e o pai estava de cara amarrada. O garoto prendeu minha atenção, tinha algo nele que me parecia muito, muito familiar mas não conseguia me lembrar do quê. Meu pai interrompeu meus pensamentos.

— Fique aqui no carro, está bem? – assenti e continuei olha do para o garoto. Seu cabelo arrumado rebeldemente, castanho, sua altura... O menino parou de discutir com o pai e saiu dando passos pesados até o suposto carro do mesmo. Apesar dos Iero terem vindo de outra cidade, eu tinha certeza absoluta de já ter o visto em algum lugar...

PILLS • Frerard •Onde histórias criam vida. Descubra agora