Harmonização é fundamental. Esse era parte do segredo do Oedipus. A bebida sempre acompanhava a sugestão da casa. O vinho encorpado aliado ao boeuf bourguignon estalava no céu da boca. O espumante certo entre garfadas de pavlova de maracujá despertava papilas até então ignoradas pela língua. Suave, requintado, provocador diziam as resenhas.
Mas uma vez por mês era dia de rolha livre. Uma cortesia que a direção fazia questão de manter. Nele, os clientes podiam trazer de casa o que pretendiam beber, em uma disputa informal para exibir bom gosto maior que o do chef. As mesas faziam uma verdadeira volta ao mundo em rótulos de vinho. Os uísques eram mais velhos que os filhos dos que aguardavam na interminável fila de espera. Acessível, inquietante, inovador.
Eu me sentei sozinho num canto aconchegante e abri a maleta para escolher a garrafa que me acompanharia na refeição. Harmonização era importante. Escolhi um de boa safra, ainda da coleção de meu avô. Minha garrafa era discreta, pequena como de licor, escura feito vidro de remédio. Não havia líquido dentro, mas havia alguma coisa. Ah, se havia... Há muito aprendi a não duvidar de seu conteúdo. Ou de sua eficiência. Quem paga o preço também logo descobre.
Chamei o garçom com um breve aceno de mão e fiz meu pedido. Rápido, atencioso, gentil. O cardápio me surpreenderia, disse ele. Na parede, as críticas em molduras elegantes não deixavam dúvidas: a primeira estrela Michelin estava a caminho. Invejável para um restaurante com menos de um ano. Sim... Invejável era uma ótima palavra.
O sucesso do Oedipus fora uma mistura bem ajambrada de talento, mídia e um pouco de sorte em uma trajetória quase óbvia demais. Eu trazia o variante, o imprevisível e, por que não, o azar. Deixei a tampa de cortiça riscada em cruz descansar na mesa e o liberei. Realmente, a noite seria surpreendente.
Minutos depois os pratos começaram a chegar. Junto com eles os pedidos de desculpas. O carpaccio de flores estava murcho; o escalope de mignon veio temperado com boas doses de açúcar. A cozinha havia posto sal para adoçar o suco de pitaya e alho frito no caramelo. Um homem sufocava na mesa do lado, tossindo e roncando com o rosto cada vez mais roxo esganado pela gravata elegante. A família gritava em desespero. Alérgico, ao que parecia. Absurdo, desrespeitoso, infeliz.
Devolvi meu prato quase intocado e não paguei a taxa de serviço fingindo despeito. Era o menor dos prejuízos da casa, eu tinha certeza. Naquela altura, cada um dos vinhos da adega milionária já havia se tornado vinagre. Cada espumante uma água sem gás insípida. A cozinha jamais acertaria novamente um ponto da carne, nem deixaria de queimar o feijão importado. Degradante, lamentável, decadente.
"Está feito", contei ao patrão. Saci estava a solta. Era só esperar. Com sorte, o Oedipus fecharia suas portas em menos de dois meses. Se forem insistentes, talvez eu volte com uma dose um pouco maior. Quando era a próxima rolha mesmo?
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Rolha
Short StoryNo dia de rolha livre, os clientes do restaurante mais proeminente da cidade fazem de tudo para surpreender o chef. Levam de casa garrafas de espumantes importados, uísques envelhecidos e vinhos de rara safra. Mas o conteúdo de uma garrafa em especi...