Moleque de favela

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Sobre antiga cama de madeira, com o colchão em péssima condição ele encostou seu corpo. Leve era o ritmo do reggae que lhe invadia os ouvidos. Deitado na cama não precisou mais do que alguns minutos para adormecer. Corpo mole na cama, respiração leve e a expressão distante demonstrava que ele se encontrava sonhando e não era um sonho qualquer, a cada momento um leve sorriso e o ar confuso se alterava em seu rosto.

Fora a maior viagem sem sair do lugar, um daqueles sonhos que você imagina e muda o trajeto do sonho a cada vontade, como se estivesse acordado sentindo tudo acontecer em sua frente. 

Naquele momento tornou-se um jogador reconhecido mundialmente, estava de frente ao gol, passou por dois zagueiros, o goleiro veio em seu encalço logo depois que tomou o drible, porém a bola já estava nas redes. Com um pequeno pulo na cama, ele sentia a euforia dominar seu ser.

Antes que pudesse se dar conta já estava em outro cenário. A euforia que o dominara, se transformou em adrenalina. Em meio a uma multidão corria com uma arma na mão e com um saco de dinheiro embaixo dos braços. A uma considerável distância encontrava-se dois policiais com pistolas em punho gritando e já o acompanhando com extrema rapidez. Sua respiração ofegante, olhar duro, se desfez ao ouvir o barulho do tiro que fora disparado da arma de um dos policiais. Seu corpo fora lançado pra frente e no momento que ia mergulhar de peito no chão tudo se embaraçou e seus olhos ficaram cegos por alguns segundos, a respiração estava presa e a adrenalina em turbilhão.

Ao invés do chão que lhe aguardava, de súbito se transportara para uma piscina olímpica. Ao emergir na água para respirar avistou uma multidão na torcida, todos gritando seu nome. A água gelada era rasgada com facilidade por seu corpo e braços quentes e ágeis. A cada grito da torcida era uma sensação diferente. Estava em primeiro lugar, faltando poucos centímetros para encostar a mão na base para a vitória e de repente começou a cair.

A velocidade era incrível. Queda livre. A piscina desapareceu em instantes e logo se viu com um pára-quedas preso as costas. O avião que o levara ficou pra trás e via-se sozinho no ar, feito pássaro, seu sonho desde criança. A incrível sensação do vento no rosto, levemente fazia abrir seu sorriso na cama. Ochão se aproximava muito rápido e então lhe veio o desespero. Tentou gritar, mas sua boca encheu de ar e o corpo se retraía com vigor. Em sua cabeça passou o filme de sua vida: ele criança mexendo na velha televisão, o início da vida escolar, jogando bola na rua aos oito anos, o primeiro beijo, a primeira relação, o primeiro crime que presenciou, o incentivo dos pais para ele estudar, os convites errados que já recebera, as loucuras que já fizera e o dia em que passou na faculdade. Custou a acreditar que tudo lhe acabaria ali, com um pára-quedas com defeito nas costas. O pânico lhe dominara e ele fechou os olhos e tentava fugir da situação. Ele era o desenhista de seu estranho sonho e conseguiu outra vez mudar de cenário.

Não estava mais prestes a ser espalhado no chão, porém o desespero era o mesmo, encontrava-se amarrado numa deserta linha de trem, com a locomotiva em alta velocidade vindo em sua direção. Começou a tossir sem parar, sentia seu corpo molhado de suor e o coração disparado em adrenalina. O trem apitando e soltando fumaça chegara e era o seu momento final, não conseguia pensar em mais nada e nem mudar de situação. Estava rendido, sem chances de defesa quando notou que a corda que o prendia ao trilho do trem estava frouxa. O farol da locomotiva já estava em sua frente. Quando se soltou e sentou sobre os trilhos já era tarde demais: fechou os olhos, sentia-se frio e anestesiado. Veio o impacto e tudo mudou.

Os seus olhos se abriram, o coração disparado e o medo em seu corpo, via-se sentado na cama. Não se lembrava de ter se esforçado para levantar o corpo. O suor corria pela face e sua camisa estava molhada. Não entendia o que aconteceu, mas mesmo assim sorriu. O celular com os fones de ouvido ao lado, pegou-o e olhou a hora: 06:30. Estava atrasado, teria de estar as 05:30 no ponto de ônibus para ir para a faculdade. Colocou o fone de ouvido outra vez e a melodia do reggae da banda Maneva o fez pensar:

"No glamour do crime, molecada ligeira,

Bem armada, de campana na subida da ladeira,

Está longe o futuro que reflete a esperança,

E sem poder brincar agora já entrou na dança.

Barulho de bala enquanto crescia,

Em meio ao caos, choro abafado, fazia a sua poesia,

Mostrando a dura realidade de ser quem ele era,

Um soldado destemido, um moleque de favela."

Levantou, abriu a janela de seu quarto, avistou os milhares de barracos que se encontravam em sua linha de visão. Pensou na vida das pessoas que moravam ali: tantos sonhos perdidos, tantas vontades, via garotos entregue a vida bandida, nas drogas e no crime, pensou na falta de oportunidade e na falta de interesse das pessoas. Analisou tudo.

O sol da manhã que penetrava seu olho o fez refletir sobre a sua própria vida, sua condição e seus sonhos. Agradeceu a Deus por mais uma manhã, por mais aquela experiência e com determinação e sem nenhuma vergonha de dizer que era um batalhador, um pobre sonhador seguiu para janela de seu quarto, encheu o peito e gritou: "VOU VENCER MAIS UM DIA, SOU GUERREIRO, SOU MOLEQUE DE FAVELA!" E assim seguiu para mais um dia de luta.

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⏰ Última atualização: Feb 24, 2014 ⏰

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