Já haviam passado três invernos desde que viera ao mundo e abrira os olhos. Mas agora era a época em que a mãe terra mais brilhava, quando todos os seres buscavam um lugar ao sol e quando seus irmãos aqueciam os ossos e aproximavam-se entre si. Ele podia ouvir bandos de voadores batendo as asas e chegando de terras longínquas, presas e predadores se deslocando e a vida fluindo pela terra.
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No sol anterior conseguira trazer dois orelhas-altas para somar à caça do bando, mas aquilo era de longe o suficiente, então precisa sair para caçar mais com seus irmãos – e assim ele fez. Ele lambeu carinhosamente a mãe e se juntou ao herdeiro, o qual estava liderando um pequeno grupo como um treinamento para um dia assumir o controle da alcateia. Haviam visto um grande galhado no sol poente anterior, e sabiam que se voltassem ao último local visto poderiam rastreá-lo. Não seria fácil, mas ele e o herdeiro eram os jovens mais hábeis do grupo. Em todo aquele tempo desenvolveram uma certa ligação, pois cresceram juntos. Era difícil distinguir qual dos dois era o melhor, mas no fim das contas isso não importava muito, pois o herdeiro tinha a primazia e ele era só mais um.
Era noite da lua grande, a preferida para seu tipo. O cheiro não enganava, o rastro era nítido e os levara até ali, já podiam ouvir os sons daquela criatura bem próximos. Porém, os quatro puderam perceber que aquele não era o único macho no local, havia mais um tão grande quanto e isso poderia atrapalhar a caçada. O herdeiro não sinalizou nenhum movimento por um tempo, o que deixou o grupo inquieto, ele percebeu. Foi então que ele decidiu usar de uma estratégia que faziam com os saltadores: iria dar a volta e se atirar numa direção que isolasse o alvo, afugentando o macho inesperado. Ele contava com o fato de que o segundo macho iria correr, pois sentia ansiedade nele. Porém, se ele estivesse errado, poderia ser um movimento fatal para ele e o bando.
Começou saindo para o cerco silenciosamente e sentiu que o herdeiro e os companheiros tiveram um nervosismo instantâneo com aquela atitude, mas se recompuseram e entenderam seus papéis. Quando chegou ao local de corrida, esperou o momento ideal da respiração da presa e partiu o mais rápido que podia até o segundo macho. Os outros correram logo em seguida, partindo dois para as laterais do alvo e o herdeiro para sua frente – a ideia é que quando ele afugentasse o segundo macho, assumiria as costas do alvo como elemento surpresa, assim os quatro finalizariam juntos a presa. Porém as coisas não foram bem como esperado. O segundo macho ficou ainda mais ansioso, mas de uma maneira violenta. Ao partir pra cima dele, o segundo galhado assumiu posição de defesa inclinando as fortes galhadas para frente: logo iria atacar. Aquilo não era bom. Teve que pensar rápido: decidiu simular que iria fugir correndo pela lateral para ver se o galhado faria o movimento de ataque carregado. A princípio o macho não saiu do lugar, mas com certo atraso executou o movimento. Então ele aguardou a criatura chegar próximo o suficiente durante o ataque, pulou para a lateral oposta e lhe deu uma mordida rápida na pata traseira assim que o macho passou. A criatura deu um grito de dor assustada e finalmente bateu em retirada. Agora ele podia ajudar o grupo com o alvo inicial.
Quando chegou, as coisas já não aconteceram mais como planejadas: o alvo havia focado num dos irmãos das laterais e conseguiu ataca-lo, chifrando-o e perfurando-o com as grandes galhadas, não se importando com as mordidas que os outros dois lhe davam. Agora já não havia mais o que pensar, pulou com tudo nas costas da criatura e ajudou o herdeiro cravando suas presas no pescoço do alvo. Um tempo de luta foi exigido, mas conseguiram abater a presa.
Aquela poderia ter sido a grande caçada deles, mas um irmão havia morrido. Então, os três que restavam juntaram-se ante o corpo do semelhante e uivaram em luto.
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Não sabia por que, mas sua mãe já não respondia seus carinhos como sempre fizera, rejeitando-o, ou passando muito tempo afastada dele. Já faziam trinta luas desde a caçada em que falhara, então não achava que este era o motivo. O herdeiro também se comportava de forma estranha, evitando-o e caçando raramente com ele. Os únicos que o acompanhavam eram outros dois jovens, gerados por uma segunda parceira do líder – normalmente rejeitados dentro do grupo. Eram dias de sol, mas os humores eram frios como a neve na alcateia.
Foi quando chegou o dia que mudaria toda a sua vida. As nuvens estavam cinzentas, os ventos estavam começando a circular com força e a umidade denunciava uma tempestade chegando. Ele não se sentia bem naquele dia, e notou isso nos dois jovens com quem andava agora. Igualmente incômodo, era o fato que só tinha visto sua mãe uma vez naquele dia: quando ela saiu do local onde dormiam juntos. Isso o preocupava muito, pois era um comportamento muito incomum na mãe e já era quase noite – a alcateia já iria compartilhar a caça. Mas aquela caça não seria para ele, nem para seus dois companheiros.
Quando todos estavam presentes diante da caça, não houve cerimônia para rasgar a carne, ou para deixar que os filhotes comessem primeiro. O líder apareceu e se colocou diante dele e dos seus companheiros, e seu espírito parecia impiedoso. Abriu a boca e mostrou os dentes, sem rosnar sequer uma vez e como uma reação em cadeia, todos os outros semelhantes começaram a pular na frente dele e dos dois bastardos, de forma hostil e procurando os afastar. Ele não entendeu nada do que estava acontecendo, ao mesmo tempo, os ventos estavam ficando muito fortes e o tempo ficava cada vez mais violento. Seu coração começou a disparar, ele começou a olhar e procurar pela mãe desesperadamente, mas nada encontrava. Passo após passo ele ia recuando diante das afrontas, quando inclusive o herdeiro pulou em sua frente lhe mostrando os dentes.
Enfim, ele viu sua mãe no alto de uma rocha: alva, como um pedaço de luz em meio à escuridão. Seu coração se aqueceu quando a viu se aproximar dele correndo, em meio a todo aquele turbilhão de ladridos. Era tudo o que ele precisava naquela hora. Mas foi diferente. Ela se aproximou e se aninhou nele de uma forma muito estranha, com o espírito igual à vez em que seu pai morrera. Como em tom de despedida, concedeu uma última manifestação de carinho ao lamber-lhe a face e então virou e saiu correndo, sem olhar para trás. "É hora de sair e viver sua vida", ele compreendeu na mensagem dela, mas não quis aceitar. Só voltou à realidade quando sentiu sua perna ser mordida – agora todos lhe empurravam para sumir dali. Ele teve que sair com seus únicos dois companheiros, correndo sem rumo e confuso – já não pertenciam mais à aquele lugar.
Enquanto corria, ouviu sua mãe uma última vez quando esta uivou em um longo e profundo som de lamento. Começara a chover.
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A Jornada do Lobo
Short StoryNeste conto, acompanharemos a jornada de um lobo: do princípio das coisas, até o derradeiro momento. A vida é um constante aprendizado, e isso não é diferente a este antigo ser. Mergulhe na pele do lobo, e siga o caminho com ele, descobrindo o que o...