Capítulo 8

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O tempo, isso é tudo o que Kai tem, e acaba antes que qualquer um perceba. A primeira vez que o garoto, quebrado em tantas partes, descobriu sobre seu tempo, ele tinha apenas cinco anos. Foi difícil descrever a sensação, principalmente por ser tão jovem.

Doía. Cada parte do seu corpo doía. Doía a alma, o coração, os órgãos, os ossos... A dor não era curável, ela acabaria quando ele acabasse. E Kai parecia acabado e, ao mesmo tempo, infinito. Ele dizia estar no fim da linha sempre que voltava da cidade. Então, a mesma dor que o matava, jogava um novo novelo ao chão: ele tinha mais um dia de vida, mais linha para chegar ao fim.

Com o passar dos anos, as coisas difíceis, a dor e o medo tornaram-se parte do seu cotidiano. Foi quando Kai parou no tempo.

Ele não mais envelhecia.

Foi duro suportar todas as partidas das pessoas que se afastaram. Ele às amava, não importando quão longe estivessem dele. No entanto, o Kai que vinha junto a dor parecia não amar ninguém. Esse Kai matou e feriu sem pena.

Era uma besta enlouquecida, diziam os sobreviventes, mas Kai só via Kai. Eram suas mãos que estavam cheias de sangue, não as de uma besta enlouquecida. Eram seus lábios que fediam a carne humana, não os de uma besta enlouquecida.

Ele queria parar. Prendeu-se aos pés da cama, mas, ao amanhecer, a cama era um amontoado de molas e plumas e panos e sangue e partes de um corpo que não era seu.

Kai fugiu. Fugiu da cidade, das pessoas, de si mesmo, do outro Kai.

Não adiantava. Nada poderia parar o outro Kai. Nada, nem mesmo Kai.

Ele decidiu que deixaria de ser a besta, mesmo se também tivesse que abandonar o homem.

Suicídio, esse era seu plano.

Roubou uma arma, era pequena o bastante para conseguir mirar em si mesmo: o tiro sibilou, queimou, sangrou. Kai sorriu antes de cair, inconsciente, sobre o chão putrido da velha casa do lago. Quando Kai despertou, era uma mistura: homem e besta. Ambos despertos numa mesma mente, enxergando o mesmo mundo, ouvindo o mesmo medo correr por suas veias, chorando as mesmas lágrimas.

Talvez tenha sido nesse momento que Kai virou sua própria besta sanguinária. Ele parou de confiar, parou de falar, parou de sentir medo, parou de tentar se segurar. Parou. O que a besta quisesse poderia ter.

Esse era seu novo tempo.

A fera não precisou mais de luares ou solstícios para se fazer presente, passou a perambular as cidades mesmo sendo dia.

Até aquele dia nada poderia pará-lo.

Mas, naquele dia, a besta conheceu um homem. Ele era indestrutível. Mesmo sendo atacado, não o atacou. Segurou a besta, olhou-a nos olhos e chamou pelo homem sob aquela face.

Kai realmente não queria sair, queria continuar ali, escondido, fingindo não ter controle sobre a situação. O homem era persistente, ofereceu-lhe uma mão, disse que o ajudaria a sair, disse que o ajudaria com a dor e que não o abandonaria. Em um segundo, lá estava Kai e não mais a besta. Ele chorava e sangrava, dizia doer, dizia doer tando...

O homem o levou para casa, cuidou de sua dor e feridas e ensinou a Kai como se conter.

Por todo o inverno, esse homem falou sobre sua própria besta e de como foi difícil domá-la. Mas, quando o inverno se foi, O Homem também precisou partir. Era algo que sua besta exigia. Também era seu ponto fraco, algo que o mataria se não fizesse.

Kai prometeu esperar, mas não o fez. Disse que domaria sua besta — nunca conseguiu. Então passou a perambular pelo mundo, sendo mais domado que domador, deixando Kai permanecer uma hora ou outra e sendo a besta por todo o tempo restante.

Era divertido, em parte. Sentir o vento sobre a penugem ruiva que cobria seu corpo robusto e grande, naquela velocidade incrível que seus novos pés atingiam... Era divertido. Ele se sentia liberto, livre.

Se Kai procurasse, sabia que conseguiria encontrar O Homem. Mas não o fez. Não o fez até que sua vida dependesse disso.

A besta já não era mais Kai. Era um monte de carne e pelos que se aglomeravam ao seu redor e agia usando seu corpo, como uma fantasia. Não havia diversão em enxergar sangue em tudo, como se todos fossem o elixir que manteria sua existência, como se precisasse engolir tudo para conseguir sobreviver. Era desesperador como voltar no tempo, ao tempo em que o tempo de Kai não lhe pertencia totalmente.

O Homem não conseguiu ajudar, ele não sabia o que fazer, não sabia como Kai chegara à tal ponto. “Você não é mais a fera, a fera é você”, ele disso. Kai não entendeu de imediato, demorou muito tempo, aliás, tempo demais — todo o tempo que não pertencia a Kai — para ele entender.

A besta reina sobre aquele corpo. Quando quer ser Kai, é Kai. Quando quer ser besta, é besta. E ninguém é capaz de mudar isso. Ninguém. Nem mesmo a própria besta.

Verão Taciturno (livro dois)Onde histórias criam vida. Descubra agora