5. Bruna - OK! Não tenho palavras para descrever

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Ok! Não tenho palavras para descrever o que foram essas duas últimas horas. Primeiro, quem é esse cara que se esconde debaixo do tal do Carlos Eduardo lá da escola? Na boa, não pode ser a mesma pessoa.

Quando ele entrou na sala, quase nem reconheci. O sapato bicolor. A calça social. A camiseta sem manga colada no corpo. Sorriso solto cumprimentando pessoas que passavam no corredor. E a tatuagem? Nunca no Brasil imaginei que ele fosse o tipo de cara que tem uma tatuagem que pega as costas, o ombro e metade do braço direito. Um tigre branco de olhos azuis imensos. Aquilo me desestabilizou. Fique impressionada pelo fato de nunca ter notado aquele tigre. Não sei como ele consegue ficar todo escondido debaixo do uniforme.

Aliás, pensando bem, faço ideia sim, porque o Carlos Eduardo fica inteiro escondido debaixo do uniforme três números maior que ele. Eu pensava que ele era um magricela. Que engano monstruoso! De fato, não faz o estilo musculoso, mas, definitivamente, aqueles não são os braços de um magricela. Percebi pela coreografia que tentou me ensinar hoje que ele pode me erguer facilmente com aqueles braços. E olha que eu tenho peito e tenho bunda. Gostosura em todos os lugares, é assim que eu sou.

Não que eu vá dizer que o meu novo professor de dança é um gato. Porém, não posso negar que, vendo-o de perto, sentindo a maneira segura como ele conduz uma garota pela pista de dança, reparando melhor como o tratamento de pele teve um resultado satisfatório, bem, as meninas têm muito mais para procurar ali do que a conta bancária recheada do pai dele.

Eu nunca fui muito boa de improviso. Eu ensaio, eu me dedico e é assim que eu trabalho. Sou capaz de interpretar qualquer coisa se tiver o tempo certo para trabalhar a personagem. Da freira velha à Lolita. No improviso, entretanto, eu me distraio fácil. Perco o controle. Quando fico nervosa, começo a falar, falar demais, falar alto. Me baixa logo a periferia, os gestos ficam amplos, meu corpo ganha vontade própria. Depois que eu me espalho, fica difícil recolher os cacos. Não sei por que isso acontece.

Confesso que a visão de Carlos Eduardo dançando com Soraya a coreografia que vamos apresentar me desestabilizou. Eu não esperava aquilo. O cara é um prodígio. Dizer qualquer coisa aquém disso é uma mentira deslavada.

Ele chegou com aquele sorriso tímido, o mesmo jeito educado de sempre. Eu, entretanto, não consegui tirar os olhos do tigre que escapava pela camiseta. Depois, falou alguma coisa, acho que algo sobre mostrar a coreografia, nem entendi direito. Uma moça muito sorridente que ele apresentou como Soraya entrou na sala trazendo um chapéu desses de malandro e colocou na cabeça de Kadu.

O primeiro ritmo da competição foi escolhido por sorteio. Deu samba. Dizem por aí que é o ritmo mais difícil. Não era o que estava parecendo. Kadu e Soraya desfilavam pelo salão numa alegria contagiante. E olha que era um sambinha do Chico Buarque. Só quem nunca subiu um morro para escolher Chico Buarque para cantar um samba.

Nada contra. Juro. Não posso ir de encontro com um dos maiores poetas da música popular brasileira, mas, fora o fato de ter pegado meio mundo de mulher na sua juventude, o Chico não tem mais nada de malandro.

O samba bate dentro do coração da pobreza desse meu país. É uma batida de coração-pandeiro que faz centenas de pessoas levantarem todos os dias, mesmo sem saber o que vão comer, na esperança da vitória nessa luta diária que é sobreviver. Chico Buarque não faz ideia do que venha a ser isso. Esse desprendimento. Essa alegria acima de tudo. Então, seu samba, apesar de bonito, não tem o ritmo necessário para subir um morro, não chega ao coração-pandeiro do povo.

Mas eu não estava prestando atenção a isso nessa hora, porque meus olhos eram daquele casal deslumbrante. Soraya, uma pluma, totalmente entregue àquele homem. E da onde vinha a confiança estampada no rosto do cara tímido da escola? Naquele instante, Carlos Eduardo era a perfeição. Eu também me entregaria a ele com as mesmas certezas que o rosto de Soraya trazia. Eu quis ser ela.

O fato é que dali a pouco era a minha vez. E mesmo querendo ser Soraya, eu não era. Não mesmo. Não via como realizar os passos complicados que eles executaram, as trocas de pernas muito rápidas, as jogadas para o ar e fazer tudo isso sorrindo. Impossível!

Fiquei nervosa, não nego. Depois disso, foi um desastre. Admito que quase não deixei o pobre rapaz falar. Simplesmente me recusava a fazer qualquer coisa que ele me pedisse, mas ele estava me pedindo muito. Mesmo que eu permitisse, mesmo que eu concordasse, eu não conseguiria fazer o que ele pedia.

Foi horrível. Eu queria pedir desculpas. Carlos Eduardo parecia bastante chateado. Não quis perturbá-lo mais. Eu o vi respirando fundo umas duas vezes buscando paciência.

Foram duas horas de agonia para nós dois.

Ainda bem que Eleonora veio falar comigo no final da aula. Foram palavras de incentivo, elogios. Disse algo sobre esforço e sobre a dança ser uma forma de atuação. Respirei mais aliviada. Eu estava pensando seriamente em desistir.

Cheguei achando que o problema estava em Carlos Eduardo. Mas, como sempre, o problema sou eu.

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Por Onde AndeiOnde histórias criam vida. Descubra agora