ou episódio selvagem para
O Primo BasílioA Portugal,
que primeiro nos deu a letra,
a lembrança dum Brasil virginal
hoje sob processos de vossa herança.*** * ***
À LUZ PRIMEIRA da manhã, quando despertava a floresta, os seus seres e os seus sons, na cuia das folhas do tajá faiscavam uns restos de orvalho da chuva que caíra toda a noite. E uma frescura de ventos por ali corria, uma cortina de névoa pairava. Logo galgava ao trono celestial o sol, e fazia amainar aquele princípio de manhã friorenta ― a sua luz coada na peneira das árvores vindo cá ao chão úmido deitar os filetes luminosos.
É neste cenário, o de uma mata virginal no seio de uma terra inculta, que ressonava docemente uma rapariga. Mais branca não se havia visto ainda naquelas paragens. Dormia um sono profundo sob o chilro das aves, o bocejo das matas, estirada no fofo tapete de folhagens ali ao pé dos troncos.
A cabecinha mimosa, a repousava sobre um braço, o penteado desmanchado e as abinhas do nariz a dilatarem levemente junto ao busto nas oscilações da respiração. Vestia-se, aliás, da própria pele: a cintura magra de ancas ossudas, os seus pelos de mulher, as pernas assim esticadas a compor um panorama de nudez abandonada às ladroagens da brisa, aos dedos da luz, preguiçosa e real feito a pintura dum Boldini!
Nisso, ali em redor e acima, dialogavam entre si os micos-leões, ariscos e eriçados, a deixar o oco dos troncos; passava em redor a espreita-la um desconfiado casal de cotias; desciam ao chão, esvoaçando as folhas ainda úmidas, pardais, bem-te-vis, arapongas e juritis, a beliscar dela os dedinhos dos pés, numa novidade contagiante que logo se fez dispersar.
Nesse instante, impregnou o ar um odor inconfundível: vinha o jaguar. Dissipava-se tão logo a excitação em redor ― embiocavam-se pelas tocas, embrenhavam-se pelos igarapés, empoleiravam-se lá no alto dos biribás, davam ala à entrada do majestoso felino.
Logo assomou ele dentre as folhagens, em passos cautos, esturrando. Veio farejar esta donzela adormecida que já conhecemos. Abocanhou-lhe o pé, fê-la saltar num grito estrídulo que tão depressa misturou-se ao guinchar dos macacos, ao bramido da própria fera, num arroubo de terror geral que fez estremecer aquele pedaço da selva. Calou-se da patada que lhe veio rasgar as carnes do rostinho mimoso, seguida da treva.
Quando a nossa rapariga reabriu os olhos, faltava-lhe o ar às narinas: nadava no meio das negras águas de um rio, a noite feita, soberana sobre a mata silenciosa.
A custo, alcançou a margem, desabando no lodo, nua em pelo, eriçada, arquejando. Nada se via em torno. Ouviu aterrada os jacarés-açus deslizando para a sua segurança aquosa, esperando, espreitando. Os insetos em sinfonia. Fugira depressa pela escuridão erma.
Mas então, para onde iria? E onde se fora meter, Santo Deus?
Sobre a noite rutilava uma lua tímida; e foi mirando-a um instante que viu Jorge. Ah, o Jorge. E lembrou-se daquela sua meiguice. E que era feito de Jorge que nunca retornava do Alentejo? E veio-lhe ainda, numa lassidão de brasa, o espectro de Basílio, o seu sorriso licencioso e as manhãs esticadas no Paraíso. Mas onde estava? Onde, afinal? Em redor, fechada num negrume denso, os silêncios da selva lhe furtavam a resposta.
O dia seguinte encontrara-a cá quase morta, despida na mesma nudez, mas sem mais na compleição a sedução e languidez com que outrora a encontramos a dormir ― de olhos abertos ao máximo enfocava o vazio, abraçada a si mesma numa caturrice mecânica. Como fora dar ali? Que lugar era ali?
E lembrou-se da patada! Santo Deus! Levou as mãos ao rosto, trêmula, a tatear-se; um alívio! Não passara de ilusão o encontro com aquele monstro pavoroso; e o pé, ainda branco e mimoso, com veiazinhas azuis ― não passara de ilusão! Mal se havia ela refeito desta torpe reminiscência, ouviu cortar o ar um sibilo sinistro. Virou-se aterrada, pudica, cobrindo-se das mãos; avistou um jovem índio brandindo o arco.
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Quimera
Short StoryFaço aqui ― e deixo explícito ― um tributo direto à obra de Eça de Queirós, "O Primo Basílio", texto que me influenciou e estimulou a este novo olhar. É, portanto, num Brasil inculto de matas virgens e oitocentista que Luísa desperta para o pesadelo...