Capítulo 1

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Os meus olhos custam a abrir. Sinto uma sensação muito desconfortável no fim da curvatura formada pelas minhas costas. Era dor. Um sentimento ao qual já me devia ter habituado, pelo menos, pelo que se tem arrastado ao longo do meu atual quotidiano. A minha vida continua escura. E esta dor que sinto ao fundo das costas também está negra. Desencosto-me desta superfície dura e rígida. Uma brisa fresca refresca o ar que tenho armazenado nos pulmões e diversos raios de Sol tentam penetrar por entre as minhas pálpebras.

Estou no terraço. Passei aqui a noite. Adormeci aqui, no único lugar em que me sinto seguro ultimamente, este local no topo de tudo. Se me aproximar do parapeito, permito à minha vista alcançar todos os pormenores urbanos constituintes da cidade. Consigo observar todos os detalhes arquitetónicos dos prédios que são cercados pelas estradas de alcatrão. Posso até ver a escola – "a que vou seria algo" normal para ser dito, mas é mentira – em que estou inscrito.

Embora pudesse ficar aqui a explorar os cantos e recantos da cidade onde moro desde que a memória me permite lembrar, prefiro deleitar-me sob as nuvens. Ao invés de assistir à corrida que os vizinhos fazem diariamente perseguindo os seus cães, opto por olhar o céu. Este tom é extraordinário, irradia algo bom. A cor do céu oferece-me um sentimento de esperança que não pode ser arruinado, nem pelo sofrimento causado por uma noite num sofá de jardim. Ainda que tenha passado a noite aqui, estou feliz, afinal, consegui dormir, o que não tem acontecido muito frequentemente. Levanto o pulso ao nível dos olhos, na tentativa de desvendar o maior mistério deste momento. Que horas são? Esqueci-me. O relógio foi para a garantia, depois de, "acidentalmente", ter caído e parado de funcionar. Assim, sem mais nem menos. Apenas uma queda e parou... Felizmente, ainda tinha seguro. Já tinha ouvido qualquer coisa sobre "ver as horas através da posição do Sol", mas acho que foi numa das aulas da Sra. Sanchez – um nome completamente espanhol, nada como ela. Nessas aulas, costumava esconder os fones por entre as mangas longas do meu casaco e posicionar a palma da mão junto à orelha onde já estavam os meus salvadores pendurados. Por isso, provavelmente, em vez de ouvir estas informações sobre a posição do Sol, devo ter ouvido uma música aleatoriamente escolhida pelo meu smartphone. Realmente, nunca percebi muito bem como funciona esta função de "Sequência Aleatória" e como é que consegue sempre passar as melhores músicas à frente. Bem, acho que isso agora não importa. A verdade é que o Sol já está quase em cima da nossa fortaleza, o que deve significar que já é tarde.

Levanto-me e caminho até às escadas. Pelas escadas, há menos probabilidades de ter um encontro inesperado com a minha mãe. Não é que eu não goste dela, mas já sei que assim que me vir em casa a estas horas – sejam lá que horas forem – vai começar novamente com o interrogatório. "Como estás?", "Vais ficar em casa?", "Estás a pensar ir à escola?", entre outras diversas perguntas para saber o que vou fazer e de que forma me pode "ajudar". É demasiada preocupação para uma só pessoa, só tenho 16, mas já sei cuidar bem de mim. As circunstâncias da vida fizeram com que eu crescesse, afinal, tudo nos muda, por mais pequena que a mudança possa parecer.

Desço as escadas. Degrau após degrau. Chego ao piso inferior, o nosso covil familiar. À minha esquerda está a sala de estar, a única divisão que não parece estar dividida do corredor principal. Tantas portas. Ao menos, não há sinal de criaturas flutuantes a guardar o tesouro. O caminho até ao meu quarto estava desimpedido. Isto é, não estão cá os meus pais, provavelmente já foram até aos seus trabalhos, como máquinas programadas para repetir a mesma rotina diariamente – o telemóvel também tem essa função! Sem querer entrar em muitos detalhes, acordam, vestem-se, vão tomar o pequeno-almoço em "família" – no qual eu raramente estou presente – discutem mais um pouco e saem em busca dos seus carros na imensidão escura do estacionamento, localizado no subsolo, como a toca de uma toupeira. Uma gigantesca e escura toca de toupeira.

Terceira porta à direita. Entro. Que alívio. Sai-me um suspiro por entre os lábios, ao pensar que ninguém está em casa. Os ponteiros do despertador em cima da minha mesinha de cabeceira apontam 11h37. Como é óbvio, não vou para a escola. Não me sinto preparado, para ser sincero. Não estou pronto para enfrentar os meus colegas que, embora não saibam de nada, fazem parecer que conhecem a minha vida desde o início até ao fim – seja lá como o fazem, porque ainda não ouvi falar de máquinas do tempo a funcionar, nem vi nenhuma por aí. Não quero ter que responder "Sim", quando me fizeram a mesma pergunta vulgarmente banal... "Está tudo bem?".

Enfim, de volta ao dia de hoje, dirijo-me até ao roupeiro. Tudo está pendurado no seu lugar, tal como ontem. Ativo o modo "Sequência Aleatória" que me foi instalado quando deixei de ligar às opiniões dos outros. Pego nuns calções, numa T-shirt e numa camisa. Pelos vistos, os calções são azuis, a camisola é de um tom alaranjado e a camisa é branca. Versão arco-íris, aqui vou eu. Livro-me das roupas de ontem. Tenho um cheiro peculiar e posso garantir que, definitivamente, não é um odor semelhante ao de rosas. Ando aqui em tronco nu – e não é só a parte do tronco que assim está, mas prefiro não desenvolver este assunto –, mas estou sozinho em casa, por isso, ninguém há de entrar porta adentro, espero eu. Com este pensamento imaginário de alguém a entrar sem bater à porta, anunciando a sua chegada, apresso-me a vestir uns boxers de cor escura – chamemos-lhe um tom preto, porque, sim, há vários tons de preto – e os calções de ganga azul por cima. Agora, sim, podia dizer-se que eu estava em topless.

Provavelmente, seria por esta altura que me dirigiria à cozinha para tomar um "pequeno-almoço em família", mas agora não tenho fome, assim como tem acontecido nos últimos meses. Caminho até à porta de madeira escura do meu quarto. Manejo a maçaneta, pressionando-a para baixo, de forma a abrir a porta. ESQUECI-ME. Volto alguns passos atrás e vou diretamente até ao lado da cama. Inclino-me. Aqui está ele! A minha única companhia dos últimos tempos. Agora, sim, posso ir embora. É-me, finalmente, permitido sair de casa. Chamo o elevador e espero pacientemente. O que vale é que estou acompanhado. Com algumas pinturas na sua superfície húmida e outra parte despintada numa parte mais rugosa, aqui está ele a criar memórias comigo. O meu transporte. O meu skate.

Depois de muitos solavancos e abanões, estou no solo, mesmo por cima da "toca da toupeira". As portas abrem e eu corro. Não é que tenha de o fazer, mas, desta forma, evito conversas aleatórias com o "porteiro" – embora o veja mais como alguém que é pago para ficar sentado a observar, uma profissão de sonho para alguém como eu, que já faço isso diariamente. Chego ao alcatrão e pouso o skate. Faço balanço com o pé direito e mantenho-me firme com a perna esquerda. Não posso mentir a mim mesmo, não tenho a certeza do lugar a que quero ir. Não sei onde hei de ir e passar o resto do dia, mas espero que esta estrada me leve a algum local agradável e com pouca gente. 

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⏰ Última atualização: Apr 28, 2017 ⏰

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