PALAVRAS
Durante o almoço, ele quase não sentiu fome. Sentado no mesmo lugar de sempre, não prestava atenção na conversa desinteressante do pai. Naquele dia não houve gestos para se contar, a mulher do outro lado da mesa comia devagarzinho enquanto dava palpites na conversa em o que o marido produzia sozinho como uma fita gravada. Contou a viagem, como foi a mais interessante feira agropecuária de sua vida. O homem não resumia, soletrava cada momento extasiante da sua magnífica aventura em busca de um bom trator que lhe coubesse no orçamento. Píer o achou o homem das palavras. Não sabia como o pai conseguia produzir tantas palavras para um único momento, apesar de ele saber que não eram momentos pequenos. Mas o pai sempre complementava essas palavras com mais um significado igualitário, dando um pouco mais de tempo ao seu texto, com certeza um livro de sessenta páginas ele transformaria em um epílogo.
Durante a tarde ele apenas se sentenciou que deveria finalizar de ler o que havia começado. O Pequeno Príncipe cambaleava em suas mãos, Píer introduzia as palavras em sua mente com a mesma clareza e lentidão de costume. Imaginou-se em uma narrativa em que Jerome era a personagem principal e ele, o seu amigo de aventuras que na verdade eram apenas fragmentos ao acaso. O que ele sentia parecia lógico, um afeto além mesmo daquela doce e saudável amizade, era algo meio incompreensível para a mente do garoto, mas talvez o coração sim. Talvez ele conseguisse decifrar aquela respiração controlada, a admiração, o frizinho na barriga quando o outro estava por perto. Mais é certo tanto a mente incompreensível como o coração latejante que tudo nela se resumia ao sabor das palavras.
Píer continuava sua leitura em uma velocidade cada vez mais aprimorada, era como uma competição entre sua língua as letras cravadas na folha branca. Exatamente quando a escuridão começou a esfumaçar o horizonte ele o terminou. Sentia-se com a mesma sensação de orgulho de quando chegava o fim de um exemplar, mas como se tivesse quebrado seu recorde de satisfação, ele decidiu entre todos aquelas outros livros aquele seria o seu favorito. Pensou no que Jerome havia dito "Eu também gosto de livros"; ele se
lembrava daquelas palavras como uma gravação instintiva. Com certeza o ofereceria emprestado ou um presente quem sabe. Mandaria o pai comprar mais um na cidade, e certamente não haveria problema em ficar sem o livro. Observou pela janela o ambiente quase escuro lá fora, se sentia extremamente satisfeito com sua recente escolha e no fundo se sentia feliz por ter a o garoto das flores como amigo.
NO DOMINGO o sol amanheceu quase oculto por detrás das nuvens, faltava um pouco mais de um mês para o natal. Píer sentia que dessa vez seria diferente, antes ele ia com a mãe para o orfanato onde ela havia vivido. Elisa sempre o incentivava a brincar com as outras crianças, mas ele apenas ficava em algum canto esperando a mãe lhe dar o presente e ele entregar o seu; geralmente desenhos que ele fazia durante várias vezes ao ano e no final os juntava em um envelope com estampa natalina, que ele mesmo comprava na loja de artigos da esquina. No último natal fora diferente, a sua mãe estava branca e sem os cabelos em cima de uma maca no hospital. O último presente dela havia sido um livro de história em quadrinhos, intitulado Robin Hood. Píer podia vê-lo a sua borda vermelha no meio da pilha de livros em cima da velha escrivaninha. Naquele natal havia dado mais alguns desenhos que ele por meses havia desenhado, ainda lembra-se do choro e do sorriso da mulher enquanto analisava cada pedaço de papel rabiscado por grafite.
Mas isso já não existia mais, ela estava entre as estrelas agora e ele somente com as suas lembranças algumas vezes agradáveis outrora dolorosas. Teve a idéia de dar para o pai aqueles últimos desenhos que havia produzido, era uma ótima idéia com certeza. E talvez conseguisse produzir mais alguns antes do natal. Píer nem mesmo havia levantado da cama na manhã nebulosa de domingo; se fosse antigamente, a mãe o puxaria pelo pé para ir a missa com ela. Mas não ali, com o pai.
Píer parou de pensar. Andou atordoadamente pelo corredor, irrompendo a sala, até alcançar a cozinha onde o pai e a madrasta repousavam fazendo a refeição. –Oi. O homem lhe direcionou aquele mesmo olhar carinhoso e diferente de sempre. –Hum. Ele resmungou em resposta.
Naquela Manhã o menino ficou feliz. Estava sentado na escada em frente a casa quando se surpreendeu ao ver o outro menino subir a ladeira,
empurrando a monark somente com uma das mãos. O rosto brilhando com uma fina camada de suor, o cansaço era evidente a cada respiração que saía das narinas. –Oi. Jerome encostou o veículo na parede. –Oi. Píer respondeu contendo o sorriso que repuxava seus lábios constantemente. Percebeu que dessa vez ele não estava sem camisa, mas com uma regata alva com manchas amarelas encardidas. Ele sentou-se no lado vazio da escada. –Porque não veio sexta? Píer perguntou soando baixo. –Eu tive que ir à escola. Respondeu torcendo os lábios. –Mas ontem não teve aulas. Contestou o menino. –Eu fui para a cidade com minha mãe. –Desculpe, é que eu esperei. As bochechas dele deram um sinal de vergonha. –Tudo bem. Jerome inflou as bochechas e soprou o ar em seguida, fazendo isso repetidas vezes. –Porquê você carrega flores? O garoto perguntou lembrando-se de quando a conhecera. –Flores! É isso são flores, as flores, eu tenho que buscar flores. O garoto saltou, montando na monark, em uma reação repentina. –Para quem? Píer perguntou se levantando brusco. –Para as freiras do povoado, geralmente nos domingos e quintas eu tenho que levar para arrumar a igreja para a missa, eu sabia que estava esquecendo alguma coisa quando vim, e acabei de me lembrar, hoje é domingo. O garoto suspirou – É... Pode vir comigo se quiser, mas não garanto que cairemos na areia. Os dois sorriram. –Acho que eu vou. O menino se sentou com dificuldade na quadro da bicicleta, mas consegui ajeitar-se. Píer sentiu o suor frio nas mãos quando a bicicleta ganhou velocidade estrada abaixo, agora já não sentia medo de voar naquelas asas.
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Os Garotos na Chuva
RomansaUm livro carregado de sensibilidade relata e constrói a história de um garoto que depois de perder a mãe vai morar com o pai e madrasta em uma zona rural. Alternando entre a depressão e a tristeza da perda, a infância do menino Píer muda drasticamen...