A Gaiola

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Cada crônica terá uma imagem com um personagem. Esse personagem não necessariamente corresponde ao que é escrito, tanto que alguns são de mídias que já existem, eles apenas serviram como inspiração e tornaram mais fácil a escrita. 

Aviso: Essa crônica é particularmente violenta

[Recomendo ouvir Sweet Dreams - Marilyn Mason durante a leitura]

Paris, Outubro de 2118, Quarta-feira, 23:50

A boate estava cheia essa noite, a musica no volume máximo tremia as caixas de som espalhadas, e diversas luzes roxo, azul e rosa piscavam freneticamente acompanhando a batida, causando certa hipnose se encaradas por muito tempo. Bebidas das mais diversas cores, sabores e teores alcoólicos eram distribuídas, junto com vários comprimidos e substancias um tanto quanto ilícitas de meu próprio estoque. Todos esses fatores culminavam numa quantidade significativa de pessoas fora do seu estado normal de consciência e preenchidas de um torpor comum a muitos ali.

Esta noite, porém, o publico era maior que as outras, o que já era esperado considerando a atração de hoje, essa seria um espetáculo a ser lembrado. A grande gaiola no centro, por enquanto escura, estava cercada por seres das mais diferentes raças e formas. Ciborgues , alienígenas, humanos, híbridos, todos juntos em volta do pequeno entretenimento que gostava de lhes proporcionar periodicamente. Eles bebiam e comiam como os porcos que eram, satisfazendo seus prazeres carnais e só me dando ainda mais nojo, porém a grana valia a pena, além do respeito que eu havia ganhado promovendo esse tipo de atividade. As pessoas aprenderam a não se meter comigo, pois se eu mesma não as matasse imediatamente de uma forma bem desagradável, elas iriam parar na minha preciosa gaiola.

Observava tudo de minha sala, num andar superior a todos, não gostava de me misturar a essa escória, não podia ficar no mesmo nível deles. Tomei um gole do whisky em minha mão enquanto um sorriso brotava em meus lábios imaginando o que veria dentro de alguns minutos. Verifiquei mais uma vez se estava tudo indo conforme o planejado, conversando com o chefe da segurança a procura de algo que pudesse me dar alguma dor de cabeça, e ele me garantiu que não havia ninguém ali sem registro, todos os rostos eram conhecidos. "Ótimo, espero que nada me estresse hoje... pelo seu bem" olhei no fundo dos olhos daquele ciborgue, que engoliu em seco e assentiu, retirando-se.

Chequei minhas vestes longas, um sobretudo que escondia meus preciosos bebês: uma faca de caça Bowie em minha cintura, do lado oposto a ela uma Combat Sporting 9x19, além de outras duas 738A-Columbia, uma em cada bota. Apesar de quase nunca usa-los, era bom ter a garantia de que se fosse preciso, faria um estrago, e acredite, já fiz muitos. Dei mais um gole na minha bebida e olhei em volta.

Ali comigo havia alguns convidados especiais, uns empresários e gente de alto escalão, afinal para poder manter esse tipo de negocio eu precisava de bons contatos pra me livrar de qualquer imprevisto. Eles mantinham uma boa conversa, com seu linguajar requintado e vestes caras, deviam se achar melhores que os que gritavam lá embaixo... tão enganados... só não vão parar na minha gaiola também porque infelizmente preciso deles.

O grande relógio digital no centro da pista marcava 23:58. "Mais 2 minutos" pensei "Acho melhor começar essa festa". Procurei um pequeno aparelho preso em minha orelha e o liguei, um som agudo ecoou por todo o recinto, fazendo as conversas se calarem e todos olharem pra mim. Vê-los daquela forma, atentos, subjugados, me fazia suspirar.

"Faltam 2 minutos!" eu gritei e levantei meu copo, acompanhada por gritos de todos la embaixo, pareciam em êxtase, e estavam mesmo, se as doses das minhas drogas foram dadas na medida certa; se havia algo que eu sabia fazer bem, era manipular esses estúpidos e agradar uma multidão. "Quando o relógio marcar meia-noite, vamos dar inicio a mais um showzinho, dessa vez com quatro convidados muitos especiais" eu apontei para a gaiola, que antes estava escura, e foi imediatamente iluminada por holofotes de todos os cantos. Dentro havia quatro pessoas acorrentadas, com capuzes pretos lhe tapando o rosto, em cada quadrante da gaiola. As correntes presas em seus punhos e tornozelos eram todas conectadas, de modo que o braço de um puxava o de outro, limitando seus movimentos. Entre eles e no teto da gaiola estavam dispostas varias serras, no próprio chão ou erguidas por estruturas de metal como se fossem pêndulos, que se movimentariam pela gaiola.

Seus capuzes foram tirados e consegui ver seus olhos piscando levemente para se adaptar a luz, tentando entender tudo que estava acontecendo. Eles não acordaram há muito tempo, a dose de sonífero que eu lhes dou é milimetricamente calculada. "Olaaaa" eu gritei para os quatro e a multidão acompanhou. O primeiro era um homem de meia idade de grande porte físico e tatuagens espalhadas pelo corpo, o segundo um alienígena com a pele coberta por escamas azuladas, a terceira uma garota de uns 20 anos com cabelo raspado e enormes alargadores, e por ultimo um outro homem de cabelos pretos com a mesma idade da garota. Seus olhos arregalaram ao perceber onde estavam e o que isso significava, e numa tentativa desesperada começaram a se mexer freneticamente para se livrar das correntes, puxando um ao outro. "Patético" pensei, um sorriso aparecendo no canto dos meus lábios. "Rapazes, não tentem se soltar, todos aqui sabem que ninguém escapa da Gaiola de Madame Sèvique". As pessoas em volta começaram a bater na grade, causando uma grande barulheira, então ergui a mão e todos se calaram.23:59. "Muito bem, vamos logo com isso. Vocês quatro tentaram lucrar com as drogas que vendiam sob minha supervisão, ameaçaram meus subordinados e desrespeitaram minha autoridade, mesmo sabendo as consequências disso. E aqui estão elas" abri meus braços com um sorriso no rosto. O homem mais velho começou a chorar copiosamente, só aumentando meu sorriso. "É uma situação bem simples, vocês estão presos um ao outro. Quando aquele relógio contar meia-noite, as serras da gaiola se ligarão e vão começar a se mexer e balançar para mata-los. O ultimo a ficar vivo será libertado. Eu desejaria boa sorte, mas se dependesse de mim vocês todos morreriam." Finalizei meu discurso e a plateia foi a loucura, eles estavam ansiosos para começo do espetáculo.

00:00

As serras começaram a girar pela gaiola, os homens se moveram caoticamente, cada um tentando desviar da serra mas ao mesmo tempo puxando um ao outro. No primeiro minuto o mais velho já havia caído em uma das serras iniciando uma chuva de sangue que só aumentou a gritaria das pessoas. Ele foi seguido pelo alienígena e depois pela garota, e em cerca de 10 minutos estava acabado, apenas o homem mais novo sobrou, totalmente coberto do sangue de seus "companheiros" e o seu próprio, já que havia perdido um braço no processo e o toco restante sangrava bastante.

"Muito bem! Excelente trabalho! Acho que o vencedor merece minha congratulações não é mesmo?" Os observadores urraram em concordância, bati palmas com um sorriso de orelha a orelha e desci até a gaiola, passando no meio da multidão que abriu passagem para mim, e meus seguranças de prontidão por perto caso alguém tentasse chegar perto. Abri-a e me aproximei do homem ajoelhado e pálido, meus saltos eram o único barulho ecoando ali, estavam todos em silencio observando o que eu iria fazer. "George, você sempre foi meu favorito sabia? Você com certeza seria o vencedor, é muito habilidoso fisicamente assim como é na hora de me roubar não é?" Minha voz falava alto e rindo, um humor tão lunático quanto eu. O homem me olhou, fraco, os olhos quase fechando pela perda de sangue. "Ah não, você não vai assim tão fácil" falei e agarrei seus cabelos puxando usa cabeça para trás, fazendo-o soltar um leve gemido de dor. "George, George... eu sei que falei que você seria libertado, mas" estalei os lábios, formando um biquinho "infelizmente, você me roubou e me desafiou, e eu não posso deixar isso se repetir." Me levantei, ainda segurando-o pelos cabelos, o que gerou mais gemidos de dor, e olhei em volta, soltando uma risada alta "QUE ELE SIRVA DE EXEMPLO" gritei para toda a multidão ao meu redor, para em seguida acionar um pequeno mecanismo em meu pulso, que religou as serras e enterrei a cabeça de George em uma delas, fazendo sangue espirrar para todo lado, nas pessoas e em mim. A serra desligou e eu me levantei, toda manchada de vermelho, o líquido viscoso pingando por meu queixo, dando-me o visual que tanto gostava, e encarei séria a multidão a minha volta, que me encarava de volta em silencio, alguns olhos arregalados, outros com sorrisos nos lábios.

Saí da gaiola e atravessei o meio deles enquanto todos explodiam em aplausos e gritos de apoio, eles amaram o show. Peguei um copo de whisky da mão de alguém e o virei em um gole só, sentindo o líquido quente passando por minha garganta causando um torpor quase tão bom quanto o de ter matado George minutos atrás. Quase. Andei impassível entre os vermes em direção as escadas que me levariam de volta ao meu andar, ninguém ousaria me tocar, com meu nariz empinado e olhar exalando ódio, loucura e superioridade, conseguindo o respeito de todos. Ninguém ali ousaria contrariar Madame Sèvique.

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