Hugo fitava seu desajeitado corpo adolescente no espelho instalado na porta do guarda-roupas. Por entre as lágrimas, sua imagem parecia borrada, mas ele sabia o quanto era perfeito. Ouvia aquela afirmação todos os dias.
E, de fato, mesmo em uma observação superficial, era difícil acreditar no contrário.
Abriu e fechou as duas mãos, complexas estruturas equipadas com os polegares opositores que possibilitavam os movimentos mais refinados do reino animal. Esfregou um pé no outro, ciente dos dois conjuntos de 26 pequenos ossos que — tal qual os 26 ossos de sua coluna — tinham seu papel individual na sinérgica estrutura que o permitia ficar em pé. Mirou as duas orelhas, que abrigavam os verdadeiros aparatos acústicos que eram seus ouvidos.
Saboreando a ironia do momento, finalmente limpou as lágrimas dos olhos. Fungando, esfregou um dedo úmido no outro, admirando a fluidez da solução salina produzida por glândulas altamente especializadas na única função de lubrificar e proteger seus olhos azuis.
Cada uma das partes mais ínfimas de seu corpo exibia tanta perfeição e propósito que era difícil aceitar que, por dentro, fosse um menino quebrado. Mas Hugo tinha certeza: por mais inacreditável que fosse, ele fora fabricado errado. Planejado errado. Quem quer que o tivesse feito, o fizera disfuncional. Seus ímpetos e vontades iam totalmente contra o que seria natural para alguém com ele, e aquilo era horrível.
Hugo suspirou. Precisava botar aquilo pra fora de uma vez por todas. Precisava falar com seus pais.
— Pai? A gente precisa conversar.
Thiago pousou a xícara de café na mesa e desviou os olhos da tela da qual sorvia as informações relevantes do feed de notícias da manhã. Suspirou e virou-se para o filho.
— Hugo, não vai começar com aquela história de novo, né? A gente já falou sobre isso. — Cruzou os braços. — Mas diga. Qual o problema?
Hugo retraiu-se, envergonhado. Embora cortês, o tom do pai era sério. Final.
— Pai, eu não aguento mais — choramingou. — Me desculpa, mas eu não gosto de...
— Para, Hugo. É sério. Para — interrompeu Thiago. Suspirou mais uma vez, e desligou o feed com um toque suave no gadget de pulso. — A gente já falou sobre isso, mas eu vou ter que repetir. Você sabe quem foi que fez você, né?
Hugo aquiesceu fracamente, lágrimas surgindo nos olhos.
— Certo. E você acha que tem alguma chance de algo tão perfeito ter criado você assim? Errado, como você sugere?
Hugo negou com a cabeça, sentindo-se sujo por negar a certeza óbvia que enchia seu coração. Tinha algo errado com ele.
— Então estamos conversados. Agora vai pro seu quarto e se conecta. A aula já vai começar.
O professor anunciou o final do período da tarde e sua imagem sumiu da tela. Hugo desligou a projeção de sua mesa de trabalho, aliviado, fazendo desaparecer os cálculos complexos que desenvolvia para o projeto final da escola técnica de aeronáutica.
Mirou o relógio. Ainda tinha algumas horas para divertir-se como bem entendesse antes que os pais chegassem em casa.
Sentindo-se neurótico e ridículo, virou a minúscula câmera que encimava o aparato de estudo à distância para a parede, de modo a assegurar a privacidade. Deitou no assoalho e esticou-se. Com um gemido, alcançou a mochila encostada bem junto à parede sob a cama e a puxou para si. Apoiou as costas na cama e abriu a bolsa. Depois de arrancar de dentro dela o calção e a camisa do time de futebol do clube, Hugo resgatou a velha boneca de pano.
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Saindo do Lugar no Armário
Science FictionConto participante do #DesafioMundosParalelos. Hugo sabe que é errado, imperfeito. Não há espaço para imperfeições na sociedade em que vive, mas Hugo não consegue mais esconder quem é.