A4

1.4K 57 5
                                    

— Olha essa foto aqui que eu tirei do entardecer de lá.

Ela me mostrou a tela do celular, onde havia uma foto de nuvens laranja-amareladas se dissolvendo num tufo de outras azul-arroxeadas em meio a uma massa de prédios altos, grandes, indiferentes. Uma bela pintura psicodélica, bem Vitória mesmo.

A imagem era a visão do apartamento dela em São Paulo. Vitória tinha largado o direito pra seguir o coração, que pulsava por um palco desde nem quando ela mesma percebia isso. De todas as várias coisas que admiro nela, a que se destaca é isso de se jogar de cara e, se quebrar, sacudir a poeira depois.

Eu me preparava pra certeira viagem astral que ela faria ali na minha frente, com as palavras e o sotaque acentuado.

— Num é lindo, Ninha? Parece... parece que o sol tá fugindo, deixando uns rastros de fogo enquanto, atrás, o resto do céu todim tenta engolir essa bola. Uma boca grande, de cores frias. O sol se afogando, tu percebe? Parece algo bom sendo engolido por uma melancolia temporária. Mas passa, amanhã tem sol de novo, que engole essa melancolia e essa melancolia engole o sol e assim se passam os dias. Tu percebe que cada pôr-de-sol tem tons diferentes? Tipo a vida, um dia de cada. O sol parece uma noiva correndo do altar, o rabo do vestido se arrastando pelo tapete.

— Que metáfora triste.

— Triste? — Assenti, era estranho ouvir Vitória falar de melancolia. Às vezes parecia que não existia tempo ruim pra ela, toda cheia de energia. Essa intensidade se revelava tanto na personalidade extrovertida quanto no físico: cabelos volumosos, cacheados, claros mas vívidos e a voz, ah, a voz... forte e rouca, porém doce.

— É, tipo... Se o sol é a noiva, a lua é o noivo. Quando um entra, o outro sai, é sempre assim. Esse, esse escuro que engole o sol parece uma eterna esperança, uma frustração cósmica. A noiva tá lá, prestes a ser tocada; a lua vem, mas traz a escuridão e, quanto mais ela se aproxima, mais a própria escuridão dissolve a luz do sol. Os eclipses parecem encontros casuais, se toparam por aí pela vida, se olharam, tchau e benção, até o próximo reencontro. Mas nunca ficam juntos.

— Mulher, eu nem pensei nisso, oxe. Só me veio à cabeça essa imagem da noiva pra comparar, tu que tá endoidando aí, criando causo! — Tive que rir, muito tempo na companhia dela tava me passando as pirações. — Mas, ó, se isso te consola, te digo que pelo menos o sol tem a companhia das nuvens brancas de manhã e a lua tem a das estrelas de noite.

— Mas eles num ficam juntos — fiz biquinho sem perceber.

— Ô, minha pinxeja — disse ela, com a voz infantilizada enquanto pressionava levemente meu queixo entre o polegar e o indicador — fica tisti não. Às vezes a vida é assim merm, num é pra se ficar.— Ela disse enquanto retirava os dedos do meu rosto, apoiando as duas mãos atrás do próprio tronco, sobre o pano no qual sentávamos. Vitória olhou reflexiva pro céu, pro outro lado — Existem outras possibilidades no mesmo céu, de acordo com o horário. A lua é iluminada pelo sol, talvez esse seja o jeito certo dos dois se amarem.

Suspirei, já tava ficando condoída pela lua. Lembrei de todas as vezes que sofri por amor. Uma bad pior que a outra, dramática do jeito que sou, sempre vou ao fundo do poço nessas ocasiões.

Estávamos no meio dum lugar de mato cerrado e árvores esparsas. Igualmente à foto, era tardinha aqui também, mas o céu era tocantinense, pai nosso. Eu fazia medicina em Minas, mas nos encontrávamos nas folgas pra cantar sem compromisso e conversar sobre a vida desde que fomos reapresentadas, digamos assim, por uma amiga em comum num pagode.

Vitória também cantava e cantava demais. Quando vi um vídeo de segundos no Facebook com aquela voz possante, lutei contra minha própria vergonha dum jeito que não sei como até hoje, e a chamei pra que cantássemos juntas. A coisa cresceu a cada encontro e viramos sintonia de vozes e pensamentos, raízes se entrelaçando.

Quem diria que aquela garotinha da pele branca e cachos loiros esvoaçantes, os quais um dia mais tarde foram lisos, me entenderia tão bem. Quem diria que a gente pudesse sustentar tanto papo. Quem diria que o tempo escorre pelos dedos ao lado dela. Quem diria. Aquela que um dia foi uma pirralha aleatória pra mim na escola, uma pirralha um ano mais nova. "Oi!", "oi".

Trouxemos um note pra gravar um vídeo só pros conhecidos. "If I Were a Boy" começou a tocar na playlist eclética e ela entrou no próprio mundinho. Era sempre assim, especialmente com Beyoncé, a diva dela.

If I were a boy, I think I could understand how it feels to love a girl, I swear I'd be a better man. Eu achava essa letra tão linda, tão poderosa, mas... será que precisaria ser um homem pra saber o que é amar uma mulher? Balancei a cabeça, querendo dissipar esse pensamento que me tomou feito um raio: inevitável, inesperado. Senti minhas bochechas e minhas orelhas queimarem muito ao observá-la ali, sentindo a música, de olhos fechados e fazendo uma dancinha leve e própria.

Pérsio e Santiago.

Vitória era Pérsio, no mood da música que admirava, performática, sempre cheia de mil falas, efusiva, ligada ao teatro; eu era Santiago, um cado quieta, envergonhada, observadora.

Nos vi nos personagens de Caio Fernando, de ''Pela Noite". Dois rapazes que se conheciam desde muito novos e se reencontram na faixa dos 30, repetindo a dose do antigo afeto repentino depois de uma noite de saídas e conversas.

Mas que porra que tá acontecendo aqui?

— Mulher! — fui desperta pro presente. — Ei, vambora que daqui a pouco escurece. Cê tá bem, Ana? Tá séria... te fiz algo? Tão quietinha, distante...

— Tu? Não, não. Tô viajando aqui, besteira.

— Mar tá bem mesmo? Hein, hein? Me sinto mal te vendo assim, qualquer coisa eu tô aqui.

— Tô bem. Obrigada — Sorri.

— Agora tu abre um sorriso aí. Olha, eu não te entendo, Ana Clara — disse ela enquanto terminávamos de recolher nossas coisas, indo pro carro. Peguei meu violão. — Quanto mais eu te conheço, menos eu te entendo.

— Menos é mais — pisquei, sentando no banco do carona.

Ela fez uma cara de surpresa, pega pela minha resposta sagaz. A boca fez um ''O'' risonho, que se desmanchou num sorriso. Deu partida.

— Tu é toda timidazinha, mas é só capa pra esconder essa paiaça aí, né? Tu é uma paiaça, Naclara.

OrigamiOnde histórias criam vida. Descubra agora